Ainda Bento XVI: os últimos escritos

A fé consiste em ir encontrando Deus «no fundo da nossa existência», nessa experiência de sermos amados e de queremos permanecer nesse amor.

Chegou recentemente às livrarias portuguesas o último livro assinado por Bento XVI: O que é o Cristianismo. Quase um Testamento Espiritual, tradução de Luísa Silva Maneiras (Cascais: Lucerna, 2023). Trata-se de uma «recolha de textos já publicados ou parcialmente novos» (p. 7) que Elio Guerriero organizou, com o aval de Bento XVI, por forma a reunir num único volume todos os escritos redigidos após a renúncia de 2013. A edição de referência é a italiana e alguns dos textos aqui reunidos são inéditos em português.

A última obra que Bento XVI havia publicado durante o seu pontificado fora A Infância de Jesus (2012). E, apesar de se sentir «exausto» aquando da renúncia, percebemos que, afinal, acabou por continuar o trabalho teológico, apanágio de toda a sua vida (p. 9).

À medida que ia lendo estes textos, senti claramente estar diante de um homem que pertence a um tempo muito concreto da história recente. Senti que ele escreve e pensa a partir de um contexto cultural diferente do meu. É normal. Embora seja o primeiro Papa eleito no terceiro milénio, a sua teologia permanecerá profundamente ligada ao século XX. Os temas que o inquietam têm a ver com a receção do Concílio Vaticano II e os exageros, nomeadamente litúrgicos, que se seguiram nas décadas de sessenta e setenta do século passado. Preocupa-se com o maio de 68, cuja libertinagem moral continua presente na sua reflexão. Considera que os cristãos devem, depois de Auschwitz, rever a sua interpretação do judaísmo. Harmoniza a fé com a razão. Procura ligar a experiência do belo, que ele vive ao escutar as missas de Mozart, com os conteúdos da doutrina católica. E manifesta, como não podia deixar de ser, um enorme apreço por São João Paulo II. Podemos fruir, a este respeito, do texto que Bento XVI aqui nos deixa de homenagem ao Papa que o precedeu no centenário do seu nascimento. É interessante observar a sua admiração pelo facto deste santo não ter aprendido teologia só com os livros, mas também enquanto operário próximo dos simples mortais deste mundo, vivendo com eles as suas «questões atuais» (p. 182).

É interessante observar a sua admiração pelo facto deste santo não ter aprendido teologia só com os livros, mas também enquanto operário próximo dos simples mortais deste mundo, vivendo com eles as suas «questões atuais» (p. 182).

Provavelmente, este livro será de difícil leitura para quem não se assumir como cristão convicto: não só porque pressupõe algum conhecimento da tradição bíblica e teológica da qual Ratzinger faz parte, mas também pelo tom de quem recorrentemente escreve «para nós, cristãos». Apesar de tudo, Bento XVI mostra-se preocupado com as pessoas do tempo presente. Assume a dificuldade de expressarmos hoje a doutrina católica a partir do conceito clássico de «substância» (p. 144), ao mesmo tempo que se abre a certas correntes filosóficas, mais contemporâneas, para as quais a «categoria fundamental de todo o real em termos gerais já não é a substância, mas a relação». A este respeito, diz-nos: «para nós, cristãos, podemos apenas dizer que para a nossa fé o próprio Deus é relação» (p. 145). No mesmo sentido, agradece o esforço que a Comissão Teológica Internacional o obrigou a fazer em relacionar-se com «outras línguas e formas de pensamento» (p. 179).

Por um lado, Bento XVI gosta de sublinhar, num sentido bem oposto ao de muita teologia que hoje se faz, a particularidade do cristianismo em relação às outras religiões e culturas. Refiro-me à diferença que a tradição cristã manifesta, segundo Bento XVI, face ao Islão, ao judaísmo e, sobretudo, à presente «cultura pós-moderna» (a expressão é sua). Também insiste em mostrar, neste contexto, a dissemelhança entre o seu entendimento da teologia católica e a de Lutero.

Por outro lado, procura sublinhar a continuidade dinâmica da História da Salvação. Há, para ele, uma continuidade, não sem reforma, da Tradição viva da Igreja. A este respeito, é interessante notar como ele procura refutar «a teoria da substituição», segundo a qual o povo que se forma a partir de Jesus Cristo substitui o povo de Israel. Este último deixaria, então, de «ser portador das promessas de Deus» (p. 63). Para Bento XVI, trata-se de uma «aliança nunca revogada», apesar de ser uma «realidade dinâmica» (p. 78). Há, assim, uma clara continuidade entre o Antigo e o Novo Testamentos, os quais foram excessivamente separados pela teologia de Lutero. Segundo Bento XVI, este Reformador aproximou-se perigosamente da heresia de Marcião, o que, aliás, explica o antissemitismo de ambos. Destaca-se, neste âmbito, a interpretação que Bento XVI propõe do desabamento do Templo com Cristo: esse evento vem significar o fim da linha divisória que «se entrepõe entre o espaço linguístico e existencial da legislação mosaica, por um lado, e o do movimento que se reuniu em torno de Jesus Cristo, por outro lado». Desse modo, «os ministérios cristãos (episkopos, presbyteros, diáconos) e os regulados pela lei mosaica (sumo-sacerdotes, sacerdotes, levitas) passam a estar abertamente lado a lado e podem, portanto, com uma nova clareza, ser também identificados uns com os outros» (p. 115). Com isto, Bento XVI defende que o celibato é mais conforme à condição dos presbíteros: até porque corresponde à prática da Igreja primitiva, onde se exigia «a abstinência sexual» mesmo aos padres casados (p. 119).

Há, assim, uma clara continuidade entre o Antigo e o Novo Testamentos, os quais foram excessivamente separados pela teologia de Lutero. Segundo Bento XVI, este Reformador aproximou-se perigosamente da heresia de Marcião, o que, aliás, explica o antissemitismo de ambos.

Sabemos que um dos aspetos fundamentais da teologia de Ratzinger diz respeito à continuidade entre a razão natural e a Revelação sobrenatural. E isso volta a aparecer nestes textos. «As sementes do Logos» estão presentes em todos os povos e tempos da história. Já Clemente de Alexandria o dizia (p. 40). É, pois, fundamental para a religião católica, isto é, universal, não só a harmonia entre fé e razão, mas também a unidade entre judeus e gentios. São Paulo compreendeu-o bem ao não querer separar-se dos gregos. Pois, segundo Bento XVI, a «reconciliação entre a fé e a razão» só se cumpre plenamente quando, depois de assumirmos que Deus é Criador do céu e da terra, assentimos que Ele também reúne toda a humanidade num povo em caminho (p. 77).

Esta harmonia entre a luz natural da razão e a Revelação implica que, apesar de distintas, a filosofia e a teologia jamais se separam radicalmente. Se «o conceito de Criação», que o povo hebreu parece ter desenvolvido sobretudo durante o exílio, tem que ver com as questões metafísicas sobre as primeiras e últimas causas do universo e do ser humano, a dependência para com Deus acarreta fortes implicações antropológicas e morais (p. 36). Sem a ligação ao Criador, que estabelece o Amor na origem de todas as coisas, as pessoas separam-se umas das outras. Na medida em que perdem o fundamento que as liga como irmãs umas às outras, as pessoas ficam apenas entregues às suas próprias forças. Centradas nos seus desejos e caprichos, desvinculam-se da Verdade que poderia uni-las em harmonia. A lei do mais forte impõe-se nesse horizonte, que rejeita colocar Deus no centro e na origem de todas as coisas. É assim que Bento XVI procura mostrar como a autonomia radical da presente «cultura pós-moderna» tende a gerar violência e intolerância, contrariamente ao monoteísmo cristão.

Sem a ligação ao Criador, que estabelece o Amor na origem de todas as coisas, as pessoas separam-se umas das outras. Na medida em que perdem o fundamento que as liga como irmãs umas às outras, as pessoas ficam apenas entregues às suas próprias forças. Centradas nos seus desejos e caprichos, desvinculam-se da Verdade que poderia uni-las em harmonia.

Neste contexto, é ainda de referir a homenagem a Alfred Delp, mártir do nazismo. Trata-se de um jesuíta que teve a coragem de defender a doutrina social da Igreja pagando o preço de ser cruelmente executado pelo regime nazi (p. 187). Para Bento XVI, a vida de Delp mostra-nos como a experiência de fé nunca se desassocia do compromisso em prol da justiça neste mundo. O «testemunho cruento dos mártires» revela-nos que a fé não nos afasta deste mundo e do empenho pela construção da justiça já nesta vida. Eles, os mártires, vivem da esperança que os leva a darem a vida pela verdade e pela justiça (p. 189).

Bento XVI afirma, ainda, a continuidade entre os últimos pontificados. Chama a atenção para o facto do último livro de João Paulo II ter versado sobre a misericórdia de Deus. É essa a marca do atual pontificado de Francisco, cuja autoridade Bento XVI respeita claramente. É um «sinal dos tempos» a necessidade de perdão, de acolhimento, de misericórdia (p. 96). Esta constitui um ponto de contato entre os homens e as mulheres de hoje e o tesouro que Deus confiou à Igreja. Com efeito, segundo Bento XVI, as pessoas de hoje estão carentes de misericórdia: «num mundo “tecnicizado”, em que os sentimentos já não contam, aumenta todavia a espera de um amor salvífico que seja dado gratuitamente» (p. 97).

«num mundo “tecnicizado”, em que os sentimentos já não contam, aumenta todavia a espera de um amor salvífico que seja dado gratuitamente»

Essa continuidade também se manifesta na junção, ou tensão, entre aparentes opostos que a teologia católica recusa separar. Não é só a fé, mas também as obras que nos abrem à redenção e salvação de Deus. Nem a graça fica sozinha, por pressupor a natureza. Quanto à Escritura, é evidente que ela surge numa Tradição viva que a vai produzindo e estabelecendo em termos canónicos.

Neste contexto, é interessante perceber como, para Bento XVI, a Missa é simultaneamente ceia, qual banquete, e sacrifício. Na Missa, a gravitas própria a um culto sacrificial não apaga a alegria da festa que nos reúne à volta da mesa. Não devemos escolher um aspeto em detrimento do outro. É na Missa que vivemos todos os paradoxos que a pessoa de Cristo nos revela. Sendo o Pastor eterno, não deixa de se oferecer para nós como o Cordeiro de Deus. Apesar de ser Rei, lava-nos os pés como um Escravo. Na Missa, encontramo-nos com o Cristo que vem, qual bom samaritano, perdoar-nos e cuidar-nos, ao mesmo tempo que aparece como o homem que deixaram caído quase morto, sedento do nosso amor, na espera de nos fazermos próximos para lhe tocar nas chagas. Não é por acaso que as chagas de Cristo na cruz permanecem no corpo glorioso do Ressuscitado, que por nós continua a dar a vida.

É na Missa que vivemos todos os paradoxos que a pessoa de Cristo nos revela. Sendo o Pastor eterno, não deixa de se oferecer para nós como o Cordeiro de Deus. Apesar de ser Rei, lava-nos os pés como um Escravo. Na Missa, encontramo-nos com o Cristo que vem, qual bom samaritano, perdoar-nos e cuidar-nos, ao mesmo tempo que aparece como o homem que deixaram caído quase morto, sedento do nosso amor, na espera de nos fazermos próximos para lhe tocar nas chagas. Não é por acaso que as chagas de Cristo na cruz permanecem no corpo glorioso do Ressuscitado, que por nós continua a dar a vida.

É provável que não compreendamos estes paradoxos. Mas podemos viver este encontro. Afinal, como Bento XVI diz a Daniele Libanori: «a fé é um contacto profundamente pessoal com Deus». E «esta realidade tão pessoal tem inseparavelmente a ver com a comunidade. (…) Entro na Igreja não com um ato burocrático, mas através do sacramento» do Batismo. «Sou acolhido numa comunidade que não se originou a si mesma e que se projeta para além de si mesma» (p. 94-95).

Deus não pode ser reduzido a uma imagem que fabricamos a partir da nossa imaginação ou do nosso contexto histórico-cultural. Nem sequer a razão que Ele mesmo nos deu pode abarcá-Lo plenamente. Por isso, Bento XVI insiste na necessidade de abandonarmos «a ideia de uma Igreja que se faz a si mesma»: a Igreja deve «proporcionar o encontro com Jesus Cristo» (p. 95). Neste sentido, alerta para «o perigo de nos tornarmos senhores da fé, em vez de nos deixarmos renovar e dominar por ela» (p. 166). Talvez referindo-se a alguns movimentos atuais, como o Caminho Sinodal Alemão, afirma: «a crise causada por muitos casos de abuso perpetrados por sacerdotes leva inclusivamente a considerar a Igreja como algo disfuncional, a que devemos resolutamente tomar as rédeas e formar de um modo novo. Mas uma Igreja feita por nós não pode representar nenhuma esperança» (p. 167).

Mas, afinal, «o que é o Cristianismo»? Para Bento XVI, São João «exprime a [sua] autêntica natureza» no versículo 1 Jo 4, 16: «Nós conhecemos o amor que Deus nos tem». A fé consiste em ir encontrando Deus «no fundo da nossa existência», nessa experiência de sermos amados e de queremos permanecer nesse amor. Tal como a verdade e a alegria, «o amor exige ser comunicado» (p. 20). Essa é a nossa missão.

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.