Cresci convencida de que o 25 de Abril não tinha para mim grande significado. Nenhum dos meus quatro Avós nutriram grande simpatia pelo regime salazarista, antes pelo contrário. Contudo, o fim do regime marcou de forma incontornável e trágica a minha família, sendo que todos tiveram de viver emigrados por quase uma década, pese embora por razões distintas. Num sentido inverso, os pais do meu sogro tiveram de fugir de uma vida estabelecida e de sucesso numa Angola moderna, com pouco mais do que as roupas que traziam no corpo, de volta para uma aldeia perto de Santa Comba Dão. Tal como o meu marido, cresci a beber dos meus pais as estórias de uma infância interrompida, assumi as suas dores como minhas, e só mais tarde veio Abril ganhar um novo sentido. Este olhar novo e apaixonado pelas causas da Revolução, pela Liberdade, fez nascer no meu âmago um sentimento de traição quiçá mal dirigido aos meus pais e avós, que ainda hoje tento, mas não sei bem como resolver.
As complexidades políticas, sociais e culturais da minha progenitura, ainda que únicas a cada conjunto de avós de que falo, não são exclusivas da minha família. Há em Portugal milhares de famílias, a começar pelos quase dois milhões de retornados e seus descendentes, que a cada ano revivem no 25 de Abril o trauma da sua maior adversidade. Com o olhar frio de quem não viveu estes momentos, é fácil dizer que valeu a pena, ou então que era inevitável, e que o saldo para a nossa democracia e em termos de incrementos de bem-estar foi incalculavelmente positivo. E foi. Mas da mesma forma que não podemos sanear as brutalidades do regime, não devemos esquecer-nos de que nestes exercícios matemáticos de cálculo utilitarista apagamos o sofrimento tangível de todas as pessoas concretas cujas vidas foram dilaceradas pela transição.
Até há poucos anos tinha vergonha desta minha posição: se por um lado celebrava timidamente a Revolução dos Cravos e os valores de Abril, de forma ainda mais sussurrada homenageava a memória familiar das migrações e dolorosas transformações que lhe seguiram.
Até há poucos anos tinha vergonha desta minha posição: se por um lado celebrava timidamente a Revolução dos Cravos e os valores de Abril, de forma ainda mais sussurrada homenageava a memória familiar das migrações e dolorosas transformações que lhe seguiram. Mas para ser coerente tenho de assumir que na génese de quem sou está um poço de contradições.
Nesta minha jornada de crescimento e identidade, tenho chegado a algumas conclusões. Uma delas é que crescer é reatribuir significados aos símbolos com os quais marcamos a passagem do tempo. Para minha surpresa, vejo afinal que o 25 de Abril sempre foi um símbolo marcante da minha vida.
De Abril-sofrimento, Abril-tragédia, e também Abril-Família, desabrochou Abril-cravo, Abril-Esperança, Abril-Liberdade. Abril, tão vivo nos corredores da Faculdade onde me formei e onde hoje leciono, com os fantasmas dos gorilas nas esquinas, manchada de sangue de Ribeiro Santos, ecos de gritos de Revolução. Abril canta os valores que me são mais queridos enquanto jurista e académica, e salienta o amargo na boca pelo desencanto recente com a nossa democracia em fraca ebulição.
Mas esta década veio também trazer consigo outros significados. No ano passado, passei o 25 de Abril grávida, de máscara, entre consultas de obstetrícia a que fui sozinha: o pai, no carro, à porta do hospital, impedido de me acompanhar por temermos uma ameaça invisível que ainda não conhecíamos. Passámos o dia abatidos pela solidão de viver uma gravidez em confinamento, enquanto na televisão assistíamos aos convidados que se reuniam na Assembleia da República. Este ano, celebro-o com a nossa filha ao lado, e imaginando o quão diferente seria para ela viver em Portugal se não tivesse acontecido a Revolução.
Da mesma forma que cumulo os significados e contradições de Abril que recolhi na flor da idade, aqui também me pasmo como num ano tudo mudou, e todos estes sentimentos se somam.
Da mesma forma que cumulo os significados e contradições de Abril que recolhi na flor da idade, aqui também me pasmo como num ano tudo mudou, e todos estes sentimentos se somam. Em 2020 foi gritante a contradição de celebrar a liberdade confinada numa pandemia global, numa prisão autoimposta que aceitávamos por um bem maior. Em 2021, com o país a meio gás, e com regras de estado de emergência que mais e mais nos parecem arbitrárias, choca a deficiência do nosso plano de vacinação, quando em Israel e nos EUA se projeta a não utilização de máscaras a breve trecho. O ano passado, marcado pelo medo de parir sozinha, como tantas outras amigas minhas e mulheres em Portugal tiveram de fazer ao longo dos últimos 14 meses. Este ano, o desejo de que a minha filha conheça um Mundo sem máscaras, mas que a doença tão pouco lhe toque.
De forma prospetiva, reflito que o Abril das causas e dos valores não morreu. Se não podemos fazer um branqueamento à história (nem à história colonial, nem ao pós-Revolução), devemos também pensar nas promessas da Revolução que falharam, e fazer um balanço à nossa Democracia com todas as suas falhas.
Se é certo que não há metamorfose sem dor, é mais verdade que em todas as suas manifestações Abril é transformação. Ninguém saiu da pandemia ileso… não conheço o futuro, mas sinto, que num Mundo pós-COVID, se avizinham grandes mudanças, e espero que enquanto pessoas e comunidades as saibamos aproveitar. Da minha parte, anseio pela liberdade no seu sentido social mais básico que tomávamos por garantido; sair de casa, poder ir ao cinema, abraçar familiares sem o medo de os estar a contagiar, receber amigos sem o peso de todas as interações sociais que se cruzam. Só posso esperar que cá estejamos, para o ano que vem e nos outros que lhe sucedem, para celebrar mais um Abril, na esperança de que seja mesmo diferente e mais livre do que este que passa.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.