A vocação poética cristã

Quem perde a Referência deixa de conseguir habitar o próprio mundo. E quem não habita o próprio mundo perde a sensibilidade para encontrar o Mistério aí presente.

No outro dia, numa tarde de saudável de procrastinação, “tropecei” numa conferência cujo título inusitado me despertou do meu torpor: A vocação poética do cristão e o seu contraponto com a prática cristã em declínio, no Ocidente.

Várias notas: Que o cristianismo está em decadência no ocidente não é novidade. Já muitos escreveram sobre o assunto; alguns cépticos mais convictos já lhe decretaram a morte, enquanto que outros analistas, mais optimistas, enunciaram diversas propostas de solução. Podíamos entrar nesse debate e talvez não fosse perda de tempo. Mas a mim interessa-me, sobretudo, uma pergunta anterior: o que queremos dizer, quando dizemos Ocidente?

Pode significar somente um espaço geográfico, um determinado modelo económico ou uma determinada tradição ético-religiosa. Ou pode simplesmente ser o produto de um imaginário coletivo, e que nem sequer exista na realidade. Ou outras coisas ainda mais sofisticadas. Há, no entanto, uma aproximação ao conceito sobre a qual eu próprio nunca havia dado conta e que creio perfeitamente justa: Pensar o Ocidente a partir daquilo a que ele é relativo, ou seja, o Oriente.

Podemos entender o Ocidente como aquilo que está virado para o Oriente, tal como as igrejas dos primeiros séculos, que rasgavam uma janela na parede virada para a Aurora, recebendo assim os raios da manhã que simbolizavam a Cristo, sol nascente, que vem iluminar os que jazem nas trevas e nas sombras da morte. Partindo deste principio, talvez essa crise do ocidente cristão, ou do cristianismo no ocidente, como preferirmos, não seja outra que o esquecimento de olharmos para Oriente. Esquecimento dessa referência para a qual nos devemos tornar em busca da Luz que ilumina todas as coisas, como a manhã da Criação do Mundo.

Somos chamados a ser artífices-poetas contra a inércia que nos invade diariamente a nossa desgastada vida espiritual. Contra o desperdício das horas mal passadas a planear os supostos momentos de oração futuros.

Quem perde a Referência deixa de conseguir habitar o próprio mundo. E quem não habita o próprio mundo perde a sensibilidade para encontrar o Mistério aí presente. E é aqui que entra a vocação poética do cristão, que nos reenvia ao Mistério para lá da espessura das coisas, para a contemplação das relações profundas com o Mundo, com os Outros e com Deus.

Importa notar que esta vocação poética vai muito além da capacidade de ordenar palavras em sonetos ou outro tipo de poemas. Envia-nos sobretudo à poiesis grega, que significa criar ou fazer, não no sentido de quem explora a natureza e as coisas em vista de uma satisfação bruta dos próprios desejos, mas a um fazer-lugar, que será no caso cristão um fazer lugar sagrado, onde as palavras ressoam um outro significado e se estabelecem relações justas. Somos chamados a ser artífices-poetas contra a inércia que nos invade diariamente a nossa desgastada vida espiritual. Contra o desperdício das horas mal passadas a planear os supostos momentos de oração futuros. Contra a irritação pela consciência da nossa mediocridade diante do Deus que quer habitar em nós. Contra os anos de estagnação espiritual. Contra as hipocrisias interiores que diluem o nosso Oriente. Contra as birras que fazemos. Chamados apesar de tudo isso a fazer lugares sagrados na nossa Vida.

Eu creio que todos nós, de algum modo, sabemos o que isso quer dizer, ainda que o guardemos na nossa consciência e no segredo dos nossos quartos. E talvez por isso usemos outros poetas, aqueles que têm jeito com as palavras, como espelhos dos desejos divinos que ocultamos. Da nossa safra lusitana, o Deus que nos habita é desde há muito cantado. E se é verdade que um de nós tem os nossos poemas preferidos, outros, no entanto, são preferidos de todos, como o poema de Antero:

 

Na mão de Deus, na sua mão direita,
Descansou afinal meu coração.
Do palácio encantado da Ilusão
Desci a passo e passo a escada estreita.

Como as flores mortais, com que se enfeita
A ignorância infantil, despojo vão,
Depus do Ideal e da Paixão
A forma transitória e imperfeita.

Como criança, em lôbrega jornada,
Que a mãe leva ao colo agasalhada
E atravessa, sorrindo vagamente,

Selvas, mares, areias do deserto…
Dorme o teu sono, coração liberto,
Dorme na mão de Deus eternamente!

Fotografia de Jr Korpa – Unsplash

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.