Lembro-me, desde muito pequena, de sentir o “peso da verdade”. Sentir que devia dizer (aos meus pais, naturalmente) como as coisas eram de facto, por mais que isso pudesse ter consequências. Fui aprendendo que, quando trazia a verdade, o resultado era sempre o melhor. Se por um lado sentia o alívio de não esconder asneiras, nem de mentir como alguns amigos e amigas faziam, com o medo constante de serem apanhados, por outro os meus pais sabiam gerir muito bem as suas reações quando percebiam o gesto (algumas vezes corajoso) de assumirmos os nossos erros.
Lembro-me, mais tarde, de aprender a dificuldade de dizer a verdade em situações mais complexas, como nas amizades. Quando havia uma discussão ou um desentendimento entre irmãos ou com amigos, ou mesmo com namorados, podia ser mais complicado dizer a verdade, sobretudo quando se tratava dos nossos sentimentos, de nos sentirmos magoados ou melindrados. “Dizer tudo, mas com o coração nas mãos” era e é uma máxima da minha mãe que já dei por mim a usar várias vezes ao longo da vida – sobretudo adulta.
Aprendi que a verdade pode ser muito libertadora e tem também o poder de nos aproximar do coração do outro a quem nos abrimos. E que, ao contrário, a mentira e a omissão afastam, corroem e diminuem-nos. “Por isso, deixem a mentira e falem a verdade cada um ao seu próximo, pois somos todos membros de um mesmo corpo.” (Efésios 4:25).
Mas também já achei que fosse mais fácil mentir. Dei por mim a pensar que devia ser bom conseguir escapar ilesa a muitas situações, até passar por uma pessoa diferente da que sou. Mentir também nos ajuda a evitar conflitos, a passar por mais competentes e capazes do que somos, a dar uma imagem de que está sempre tudo bem – tornamo-nos pessoas mais “easy going”! Porquê dizer a verdade quando posso agradar? Para quê abrir o coração e falar do que me doeu se posso bem deixar passar a situação, mesmo que isso me afaste do outro? Além de que, acreditando na verdade, é mais demorado (e penoso) aprender a distinguir quando os outros estão a mentir ou a dizer uma versão deturpada da realidade.
Também comecei a pensar que se calhar devia ajudar os meus filhos a terem vantagens sobre os outros. Se mentirem convenientemente, pode ser que se safem melhor na vida! Assim reuni uma pequena lista para ajudar outros pais que tenham também este desejo, a que chamei de “10 passos para criar um pequeno-grande mentiroso”. Espero que seja útil! Aqui vai:
1.Comecemos por fazer promessas que não vamos cumprir. Quando a criança estiver a fazer a maior birra da vida ou não quiser comer, prometa-lhe um doce ou uma ida ao parque. Quando for o momento de atribuir o prémio, dê-lhe um redondo não.
2.Quando descobrir uma grande asneirada (uma parede pintada, o conteúdo da caixa de cereais espalhado no chão da cozinha) e quiser encontrar culpados, exija a verdade a todo o custo. E, se a criança admitir a asneira, ralhe muito por cima, assim, da próxima vez, ela já sabe que não pode assumir o que fez.
3.Ignore quando o seu filho mente. De preferência ria-se e reforce a realidade que ele pinta, alinhando no que está a ser dito. Claro, isto apenas a partir dos 5/6 anos, em que eles já sabem bem distinguir uma coisa da outra. O reforço positivo é das melhores coisas para confirmar padrões e comportamentos.
4.Conte a outras pessoas uma história que aconteceu à frente do seu filho, mas com pormenores diferentes. Nem precisa ser muito evidente, as crianças absorvem tudo. Basta acrescentar um ponto ou outro e alterar uns detalhes. Monkey see, monkey do!
5.Dê desculpas inofensivas. Se alguém ligar ou chamar por si, mande a criança dizer que está muito ocupado e que não pode atender, mesmo que esteja a descansar no sofá. Também merece ter os seus momentos, não é? Coerência acima de tudo.
6.Minta sobre si e sobre a sua família, sobretudo para conseguir algo de que precisa. A tal promoção para conseguir o pack escolar 3 por 2 era até à semana passada, mas esqueceu-se de ir à loja? Diga que uma vendedora é que lhe deu mal as informações, que a culpa foi dela e que, por isso, tem todo o direito àquela promoção e assim o exige. Leve o seu filho consigo, para ver como se faz.
7.Evite dar explicações quando lhe fazem perguntas difíceis. Conversas complexas são na escola e as perguntas requerem respostas cientificamente fundamentadas. De preferência dê desculpas para evitar esse tipo de assuntos.
8.Minta quando se sente triste, magoado ou irritado. Não fale sobre as suas emoções, não diga como se sente ou muito menos qual foi a situação. “Está tudo bem” é a máxima.
9.Teve uma noite difícil? As crianças não dormem? Ligue para o trabalho a dizer que está doente e que não pode mesmo ir, que as crianças estão cheias de febre. Mais uma vez, não se esqueça de ligar à frente dos pequenos aprendizes.
10.Tem visitas em casa e quer impressionar? Gabe-se de coisas que não fez e conte “as últimas” das crianças, exagerando bastante nos seus feitos. Pode até inventar algumas situações na escola ou nas férias que os façam parecer ainda mais engraçados e divertidos do que já são. Mostre-lhes como se parece o sucesso.
Com certeza haverá muitas mais formas de ensinar os nossos filhos a mentir, mas estas parecem-me eficientes e fáceis de integrar no nosso dia-a-dia. Sobretudo se pensarmos na facilidade de algumas situações em que estes pequenos deslizes simplificam tanto a nossa vida!
As crianças são o nosso espelho e crescem a refletir as nossas atitudes e os nossos valores. Estou cada vez mais convencida que ensino pelo que sou e faço, muito mais do que pelo que digo. O exercício da verdade obriga-nos a procurar a verdade, a procurar a nossa verdade, e a querer usá-la e vivê-la acima de tudo. E assim, a verdade torna-se um lugar de força e de encontro, torna-se um superpoder. “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.” (João 8:32).
Nota final: Este texto mistura, propositadamente, ironia com verdade. Caso não tenha sido claro, sugiro a sua repetida leitura.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.