Não estamos a falar de futebol. As transferências milionárias futebolísticas não têm qualquer valor comparadas com esta. Podem encher os olhos e até as carteiras de alguns, mas duram pouco. São transferências exuberantes, noticiadas, apontadas como feitos extraordinários, mas de facto, são muito pouco significativas.
A transferência de que falo é milionária porque de facto não vai (só) ao bolso de quem a paga. Vai à vida de quem a paga. É uma transferência única, num único movimento misterioso, com efeitos colaterais perenes, enormes e extensos.
Vamos por partes.
Porque há tanta gente que resiste a uma adesão a Jesus Cristo? Julgo ter a ver com os efeitos colaterais desta transferência. Jesus traz-nos uma proposta de felicidade baseada em critérios reconhecidos e valorizados por todos. Diz e faz o bem num único movimento, traz a paz, faz a festa, cura quem o rodeia, salva os perdidos, os oprimidos, os abandonados. Apresenta um caminho de verdade, e de vida, que corresponde aos anseios mais profundos de qualquer ser humano. Então qual é o problema? Se é o que todos buscamos, porque há tanta reticência, mesmo dos que o conhecem e tentam seguir? Muito simples. A proposta é boa. É, aliás, a melhor do mundo. Mas é difícil e, começando numa manjedoura, acaba numa cruz. E isso custa e tem efeitos secundários também nas nossas vidas.
A proposta é boa. É, aliás, a melhor do mundo. Mas é difícil e começando numa manjedoura, acaba numa cruz. E isso custa e tem efeitos secundários também nas nossas vidas.
Pressupostos da transferência mais cara da história
A moral cristã que nos é apresentada e foi sendo depurada ao longo dos séculos parte de uma premissa muito concreta: “afasta-te do mal, e aproxima-te do bem”. Uma vida cristã bem vivida parece que tem de ser gozada nesta condição primeira de análise do que é o bem e o mal e da consequente e permanente opção de aproximação ao bem. Mas esta conceção traz-nos vários problemas:
a) Antes de mais, facilmente cria uma visão do mundo dualista, que coloca o bem e o mal dentro de fronteiras bem definidas e em territórios opostos. Consequentemente tende a dividir eticamente a realidade entre bons e maus, situando os puros de um lado e os impuros do outro. Ou se está no clube dos que são santos e verdadeiros cristãos que respeitam os preceitos de uma moral clara, muito bem regulada, que não dá margem para erros porque objetivamente se cumpre ou não se cumpre, ou se está fora e o peso da exclusão, da incapacidade para se alcançar a santidade, do beco sem saída, torna-se atroz. Não se condena só o mal, mas o malfeitor, o que o pratica. Para o que cumpre o preceito à risca é fácil cair num olhar para os que estão fora com a sobranceria de quem se sente parte de uma elite, dos escolhidos, de quem pode julgar o mundo e os seus habitantes a partir da sua prática moral irrepreensível. A agravante desta conceção da realidade é que para os puros, os cumpridores, é uma questão de tempo para se dar um pequenino passo em falso e ir parar sem dó nem piedade ao saco dos pecadores impuros e sem salvação. Ou seja, a médio-longo prazo não se consegue suportar uma vida sob este prisma, quer se esteja num lado ou no outro, de forma saudável, mesmo com o sacramento da reconciliação à mão. Vive-se o permanente desgaste de uma salvação que se afasta cada vez mais, como se Jesus não nos tivesse já salvo, e o nosso papel não fosse antes aderir a essa salvação, não por mérito, mas por graça.
b) O bem até pode ser luminoso e claro e o mal sombrio e escuro, mas a realidade não é preto no branco. A realidade é feita de uma panóplia de cinzentos e até de uma infinita palete de outras cores. Por isso, saber qual e o que é o bem, assim taxativamente e em todas as situações, é difícil e complicado e talvez mesmo impossível à capacidade humana. O mal aparece quase sempre com aparência de bem. Aliás, se não fosse atrativo, se não trouxesse algo de bom (ainda que um bem menor ou muito menor), se não fosse elegante, sofisticado, ou prazeroso e confortável, ninguém optaria pelo mal. Se fosse tão fácil de identificar e de rejeitar seríamos todos santos. Mas mesmo que assim sucedesse, se conseguíssemos identificar e colocar o mal sempre de parte, a vida anima-se já imensamente, quando apenas queremos encontrar o maior bem. Só o mais, o maior bem, serve melhor a Deus, e a nós também. E já nos dá muito trabalho. Esse é o campo do discernimento, o lugar do encontro do eu, do nós, com Nosso Senhor, onde as vontades mais profundas convergem, a partir de uma liberdade, numa opção consolada e alegre para o presente, com consequências futuras.
c) Se calhar o maior problema desta conceção moral é que Jesus nunca fez nada disso. Jesus nunca se afastou do mal. Jesus nunca teve medo do mal. Pelo contrário, foi sempre ao seu encontro, não para se deixar dominar por ele, mas para aniquilá-lo e salvar quem dele estivesse refém. Jesus faz com o mal o que um pescador faz aos polvos: vira-lhe a cabeça para ficar sossegado. Jesus “vira a tripa” ao mal e ao pecado. Identifica-o, dá-lhe nome, confronta-o, dá-lhe a volta, torna-o inoperante, liberta e dá a vida. Jesus nunca se coibiu de ir ao encontro dos que sofrem, dos pagãos, das prostitutas, dos colocados de parte, dos abandonados, dos esquecidos, dos malfeitores, dos pecadores, dos impuros. No escuro, no pecado, fora do clube dos eleitos, onde parecia não estar Deus, aí está Jesus. Nos seus trajetos bem delineados, com destinos bem escolhidos, Jesus nunca deixou de responder àqueles que interrompiam os seus passos, que o desviavam do seu trajeto, que o impediam de continuar, para ir ao seu encontro e ao mal por que passavam, para os libertar e dar a vida. Chefes de sinagoga, hemorroísas, centuriões, cegos, leprosos, possessos, coxos, paralíticos, prostitutas, cobradores de impostos, famintos, sofredores, cananeus, samaritanas, sacerdotes e doutores da lei, ricos ou pobres, adúlteras, moribundos e mortos física ou espiritualmente, a nenhum foi recusada a presença de Jesus diante do mal que viviam.
Parece que Jesus dá o bem e recebe o mal. A cada passo, Jesus levanta o sofrimento de quem tem à frente e passa a carregá-lo sobre si. Não se nota logo. Mas na Sua Paixão isso torna-se evidente.
No entanto – e aqui é que está a transferência milionária – isto tem um custo enorme. Em cada um destes encontros há uma espécie de transferência. Parece que Jesus dá o bem e recebe o mal. A cada passo, Jesus levanta o sofrimento de quem tem à frente e passa a carregá-lo sobre si. Não se nota logo. Mas na Sua Paixão isso torna-se evidente.
Na Paixão, na cruz, é Jesus que fica imobilizado como o paralítico; verte sangue como a hemorroísa; recebe o beijo pervertido da traição de Judas, é vendido por 30 moedas de prata e a sua carne é penetrada por cravos como a prostituta; torna-se impuro como os leprosos, deixa de ver pelas agressões a que é sujeito como os cegos; é visto como traidor como os cobradores de impostos, morre como a filha de Jairo ou como Lázaro. Torna-se maldição, torna-se pecado, por transferência, e é suspenso na cruz entre dois malfeitores.[1]
Jesus torna-se uma espécie de banco mau. Todos os maus ativos caem sobre Ele, para nós, todos nós, ficarmos com o banco bom, o banco da graça. E por isso mete tanto medo.
Se queremos ser como Jesus, se acreditamos nesse projeto de felicidade, se acreditamos no amor, sabemos que entramos neste jogo em que Jesus entrou sem medo. Todos sabemos que amar exige transferência. Que dar ao próximo aquilo de que ele precisa exige que eu dê de mim, e viva (mesmo que em parte) o que o outro vive. Exige que o peso do sofrimento, do pecado, da exclusão, da responsabilidade, que cai sobre o outro, caia também sobre mim. E isso é no mínimo desconfortável. E provavelmente doloroso.
Estamos à espera de Jesus que nasça de novo nas nossas vidas nas festas natalícias que se aproximam. Parecia que este gesto de Jesus, a transferência milionária, já estava concluída e paga. Mas não. Jesus continua a vir ao nosso encontro, nunca desistindo de transferir aquilo que nos pesa, a nossa humanidade, para sermos mais divinos como Ele.
[1] Gal 3, 13 – Cristo resgatou-nos da maldição da Lei, ao fazer-se maldição por nós, pois está escrito: Maldito seja todo aquele que é suspenso no madeiro.
Fotografia de Christoph Schmid on Unsplash
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.