A terapia da proximidade

Como comunidade, comecemos por acolher e aceitar os nossos lugares de sombras, os daqueles que nos são próximos, os da Igreja. Falemos deles com humildade e desejo de mudança, para que Aquele que é a Luz do mundo Se possa neles manifestar.

É difícil aceitar que a Igreja tem lugares de sombras. É difícil aceitar que eu própria sou lugar de sombras e trevas. Mas somos seres habitados por fraquezas – o dia a dia vai-nos revelando isso, por vezes de um modo pontual, outras vezes de uma forma abrupta e avassaladora. Há lugares em nós que não gostamos de revisitar e, por nos parecer ser a solução mais fácil, tornámo-los lugares fechados, negados, recalcados… até que a vida se lembra de os tornar o centro da nossa existência, sempre em momentos inoportunos e de uma forma inesperada. E assim ficamos, desnorteados, perdidos, infelizes.

Ser humano é ser vulnerável. O sofrimento é algo inerente ao homem e, no entanto, temos uma dificuldade enorme de o acolher, de o viver, de falar sobre ele. Acredito que o sofrimento é a causa subjacente de muito do mal que se vê no mundo. Creio que ele está por trás de muitos dos nossos comportamentos disruptivos, e é através dele que a escuridão invade as nossas vidas. É a nossa incapacidade de lidar com o sofrimento que cria muitos dos nossos lugares de sombra e penumbra.

Perante o sofrimento, a resposta natural parece ser o desânimo, o desalento, a desesperança, as sombras. A própria sociedade não se inclina a defender outro rumo que não esse. Espanta-se e inquieta-se se alguém que atravessa um deserto sofrido não mergulha numa profunda escuridão.

Mas imagino que todos nós conheçamos pessoas que, face a uma tragédia pessoal, a vivem (e vivem a vida que prossegue) de um modo extraordinariamente belo, resgatador e luminoso. Com as suas escolhas e decisões, elevam-se acima do seu destino e, consigo, levam toda a humanidade.

Perante o sofrimento, a resposta natural parece ser o desânimo, o desalento, a desesperança, as sombras. A própria sociedade não se inclina a defender outro rumo que não esse.

Não estou a dizer que devemos desejar ou procurar a fragilidade, nem que Deus no-la oferece ou impõe para fazermos um caminho de vida mais iluminado. Mas acredito, com todo o meu ser, que não devemos fechar os olhos ao sofrimento, não devemos calá-lo, não devemos fugir da nossa fragilidade ou da dos nossos próximos. Também Jesus se comoveu e perturbou, ao ver Maria, e os judeus que a acompanhavam, chorar pela morte do Seu amigo Lázaro. E com eles chorou. Aceitando e acompanhando a vulnerabilidade, rezando as nossas fraquezas, com humildade e simplicidade, aprendemos a reconhecer uma profundidade maior no que nos é dado viver.

Com a doença e morte do Constantino, meu marido, sinto que o meu coração foi violentamente rasgado. Mas a dor que esse rasgo incurável me traz não se pode dissociar nunca da Alegria do caminho de amizade, namoro e matrimónio que percorremos juntos. É assim que a dor ganha sentido: afinal, não há Cristo Ressuscitado sem chagas! Se não olharmos para a dor como parte da felicidade, negamos a perda e a ausência, e tornámo-las tabu, o que faz com que rejeitemos tudo o que foi vivido antes e comprometamos também o futuro.

De igual modo, a Igreja, com todos os desafios que atualmente enfrenta, é agora chamada a fazer um caminho resgatador através das suas sombras. Não neguemos o mal que cobriu de trevas a vida de todos aqueles que sofreram abusos sexuais dentro da Igreja. Não neguemos o mal que a exclusão causa a tantos leigos comprometidos, o mal que o abuso de poder inflige a tantas pessoas vulneráveis e desfavorecidas, o mal que a solidão e a formação para uma dormência emocional lentamente instalam em tantas vocações.

Mas não esqueçamos que somos humanos, porém habitados por Deus! E, sendo habitados por Deus, porque abafamos o que é tão específico do cristianismo, a alegria? Esta alegria que nasce e renasce todas as vezes que nos encontramos com Jesus, e que nos torna homens e mulheres apaixonados e enamorados por Ele: porque a abafamos, com regras, formalismos, apego ao dramatismo, em vez de contagiar os outros, em particular os que nos são próximos, com o fogo da fé, o fogo da esperança, o fogo da caridade?

Não neguemos o mal que a exclusão causa a tantos leigos comprometidos, o mal que o abuso de poder inflige a tantas pessoas vulneráveis e desfavorecidas, o mal que a solidão e a formação para uma dormência emocional lentamente instalam em tantas vocações.

No prefácio do livro Humano mais Humano – uma antropologia da ferida infinita, de Josep Maria Esquirol, Paulo Ramos afirma que «no mais fundo do homem se encontra uma misteriosa capacidade de ser afetado, ferido, que nos cinge numa comunidade mendicante de amor e de sentido». Ora, parece-me que uma comunidade assim mendicante caminhará sempre na busca do que lhe falta. Na minha vivência pessoal, a fé resgata-me, em especial por ser vivida em comunidade: uma comunidade de amigos no Senhor que nunca nos deixou – a mim e à minha família — sermos solistas no que nos foi e é dado viver, que sofreu connosco, que lutou connosco, que ama connosco, que é connosco.

Diria que um caminho que se faça em comunidade ajuda a atravessar as adversidades de um jeito que, por ser tão humano, toca o divino. Também Jesus escolheu constituir comunidade e, ao chorar com Maria e os judeus que a acompanhavam, junto ao túmulo de Lázaro, trouxe vida ao que já estava morto há quatro dias. Falar com aqueles que têm, no sofrimento e na dor, um ponto comum connosco, falar com os que «falam a nossa linguagem de vida», numa proximidade que acredito ser terapêutica, pode mudar radicalmente o registo de como vivemos o que nos é dado viver.

Sendo assim, porque continuamos a insistir que uma doença incurável seja vivida no silêncio e a sós? Porque é que achamos natural que uma criança que perca o pai ou a mãe em tenra idade fique também órfã das conversas que pode ter sobre isso? Porque é que o luto de um filho não pode ser vivido, chorado, gritado em comunidade, partilhado com aqueles que entendem de igual modo, com toda a alma e com a sua própria vivência, o que para os outros é inimaginável? Como foi resgatador, para nós, viver a doença do Constantino ao som de um uníssono “Isto é para ganhar!”, que, só pela sua força comunitária, saiu logo vencedor. Como foram reparadoras as conversas amorosas que outros jovens tiveram com os meus filhos, abrindo-se nas suas feridas e oferecendo generosamente a sua própria orfandade como colo. Como seria restaurador que, em cada diocese, se promovesse espaço, encontro e acompanhamento para os pais que passam (o resto de) uma vida a fazer luto por um filho.

Como comunidade que somos, comecemos por acolher e aceitar os nossos lugares de sombras, os daqueles que nos são próximos, os da Igreja. Falemos deles com humildade e enorme desejo de mudança, para que Aquele que é a Luz do mundo Se possa neles manifestar e, assim, dissipar todas as trevas. Desta forma, recordaremos em todos os nossos atos e palavras que somos habitados por Deus e, iluminados, iluminaremos também.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.