Começou o sínodo sobre a sinodalidade. Nunca anteriormente um sínodo tinha sido tão longamente e vastamente preparado e nunca também tão falado e tão discutido, mesmo no espaço público comum a todos os humanos. E com boas razões, pois o próprio assunto exigiria o método seguido, de ampla auscultação eclesial; ao mesmo tempo, sobretudo por impulso dos diversos documentos produzidos, toca em aspetos importantíssimos para a dinâmica eclesial, recolhendo temas que há muito andam em discussão (e certamente continuarão); a própria questão de fundo, que se relaciona com uma eventual reorganização das formas de exercer o poder de decisão nas comunidades eclesial, a todos os níveis, é de facto central para o quotidiano dessas comunidades.
Mas quem são essas comunidades? Qual o verdadeiro horizonte e alcance de todo este processo sinodal? Com todo o dinamismo comunicacional que o acompanha, ficamos com a impressão de que toda a humanidade está fortemente envolvida e que o impacto global será imenso. Mas será mesmo assim? Sim e não. Tentarei explicar-me.
Mas quem são essas comunidades? Qual o verdadeiro horizonte e alcance de todo este processo sinodal? Com todo o dinamismo comunicacional que o acompanha, ficamos com a impressão de que toda a humanidade está fortemente envolvida e que o impacto global será imenso. Mas será mesmo assim?
Há um dado irrecusável: as comunidades eclesiais são (ainda) minoria em grande parte do globo, onde o cristianismo historicamente tem sido minoritário; por outro lado, elas são (já) minoria nas regiões onde outrora foram maioritárias. Ou seja, numa perspetiva simplesmente quantitativa, estamos a falar de pequenos grupos no conjunto da humanidade. Mesmo naquelas regiões – como é o caso de Portugal – em que uma larga maioria de habitantes ainda se considera católica (e sê-lo-ão, certamente), são muito poucos os que estão envolvidos na vida das comunidades eclesiais e, por isso, só a uma pequena minoria este sínodo envolveu e envolverá. O sínodo parece dizer respeito, portanto, a uma minoria de habitantes do globo, que está focada na reorganização interna do seu nicho social, que outrora se considerou “sociedade perfeita” e agora reconhece as suas imperfeições e a necessidade de certas reformas. Nesse sentido, o impacto do debate e de eventuais decisões sobre a vida quotidiana dos humanos ficará confinado ao pequeno grupo daqueles que dinamizam a vida das comunidades eclesiais, espalhadas pelo mundo e que, sejamos realistas, são verdadeiramente poucos.
Mas qual é o problema, dir-me-ão? A vida das comunidades eclesiais envolve uma minoria dos humanos, mas isso em nada invalida o valor da sua atividade para aqueles que estão nela comprometidos e é preciso cuidar do seu modo de funcionamento. Estamos, portanto, perante um Sínodo claramente interno, focado na organização de um grupo muito específico, como acontece com os processos de transformação estrutural de qualquer associação ou empresa. Muitos discursos em torno ao debate sinodal, de facto, parecem confirmar esta perspetiva algo tribal, que corresponde à ideia de uma igreja viva (ou a revivificar), enquanto pequena minoria no interior das plurais sociedades contemporâneas. E, numa perspetiva estritamente sociológica, diríamos que assim é; o que não é de estranhar e possui a sua importância própria, sobretudo para um grupo tão multinacional como é a Igreja católica.
Muitos discursos em torno ao debate sinodal, de facto, parecem confirmar esta perspetiva algo tribal, que corresponde à ideia de uma igreja viva (ou a revivificar), enquanto pequena minoria no interior das plurais sociedades contemporâneas.
Mas, se pensarmos teologicamente – ou mesmo noutros paradigmas sociológicos – poderemos ficar satisfeitos com esta perspetiva aparentemente irrecusável? O impacto mediático que o processo sinodal está a ter seria, por isso, injustificado, tendo em conta que se trata de um problema interno de uma associação minoritária, ainda que não propriamente pequena. Ou será sintoma de algo diferente?
Em realidade, a sinodalidade tratada no sínodo diz respeito à humanidade inteira, mesmo que esteja a ser trabalhada explicitamente no contexto de uma minoria. Mas essa é, precisamente, a dinâmica da Igreja, desde sempre, devido à sua catolicidade. Aliás, embora de forma aparentemente paradoxal, essa sempre foi a dinâmica do povo de Israel, consciente da sua eleição, não para ser um grupo separado, claramente minoritário no interior da humanidade, mas para uma missão que diz respeito à humanidade inteira, mesmo que seja realizada ou impulsionada concretamente por um grupo minoritário. Mesmo dentro do povo de Israel, acaba por ser um “resto” minoritário que assume essa eleição; o que não invalida que ela esteja relacionada com todo o povo e, neste, com toda a humanidade.
Esse é o único horizonte pensável para a missão. Não como missão de converter toda a humanidade à comunidade estrita dos fiéis comprometidos, mas como missão de representação dessa mesma humanidade (sem preconceitos de superioridade ou de maternalismo) e de fermento no interior da mesma. Ao mesmo tempo, isso acontece na consciência de que, fora do grupo minoritário que constitui as comunidades, também fermentam os efeitos do Espírito que impulsiona o Reino de Deus. Nesse sentido, a (minoritária) comunidade dos crentes comprometidos na missão, não apenas terá de ter a humanidade inteira como horizonte da sua atividade – essa é a verdadeira catolicidade, que não permite tribalismos estritos – como terá que estar aberta a escutar o que a voz do Espírito possa dizer através dessa mesma humanidade, para além das fronteiras de qualquer comunidade cristã, mesmo da Igreja no seu conjunto.
Nesse sentido, a (minoritária) comunidade dos crentes comprometidos na missão, não apenas terá de ter a humanidade inteira como horizonte da sua atividade – essa é a verdadeira catolicidade, que não permite tribalismos estritos – como terá que estar aberta a escutar o que a voz do Espírito possa dizer através dessa mesma humanidade, para além das fronteiras de qualquer comunidade cristã, mesmo da Igreja no seu conjunto.
Este seria o verdadeiro espírito da sinodalidade, que pensa a dinâmica do “caminhar juntos” no horizonte de todos os humanos, cristãos ou não, praticantes ou não, comprometidos na vida das comunidades eclesiais ou não. Não são só os cristãos de uma comunidade minoritária que caminham juntos e devem dar corpo, na organização das estruturas dessa comunidade, a essa realidade fundamental. Isso é certamente importante e pode ser simbolicamente – sacramentalmente – muito representativo; e um exemplo negativo, a esse nível, por parte da comunidade cristã, será certamente muito nocivo. Mas a sinodalidade aplica-se a todos. E a pequena comunidade dos cristãos não pode esquecer isso, mesmo quando se reúne num sínodo organizado no horizonte dessa comunidade minoritária. Por isso, o sínodo é muito mais do que mero evento eclesiástico.
Mas serão só os humanos que caminham juntos? E os outros habitantes do planeta? E o próprio planeta, na imensa diversidade da sua constituição? Não será a humanidade representante – e responsável, a seu modo – de todo o planeta, dos mais variados agentes que o constituem, na construção de um caminho em que todos tenham realmente espaço e tempo para caminhar? Há, talvez, uma dinâmica de representação, responsabilidade e eleição que coloca as minorias humanas em relação com a totalidade múltipla e variada dos agentes planetários. Na recente Exortação Apostólica Laudate Deum o Papa Francisco volta a recordar a necessidade de repensarmos o nosso lugar no conjunto do planeta: “A cosmovisão judaico-cristã defende o valor peculiar e central do ser humano no meio do maravilhoso concerto de todos os seres, mas hoje somos obrigados a reconhecer que só é possível defender um «antropocentrismo situado», ou seja, reconhecer que a vida humana não se pode compreender nem sustentar sem as outras criaturas. De facto «nós e todos os seres do universo, sendo criados pelo mesmo Pai, estamos unidos por laços invisíveis e formamos uma espécie de família universal, uma comunhão sublime que nos impele a um respeito sagrado, amoroso e humilde»” (nº 67).
O “resto” (comunidade ativa concreta) só se compreende no horizonte de todo o povo (Igreja), que se interpreta num horizonte de referência à multidão da humanidade (catolicidade), a qual, por seu turno, se compreende num horizonte de referência à globalidade da terra, enquanto verdadeira “casa comum”. E é na casa comum que habitamos, caminhando juntos. É aí que somos – ou não – verdadeiramente sinodais. O sínodo da Igreja Católica Romana não pode esquecer este horizonte, na azáfama de resolver importantes questões internas.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.