Uma das ficções políticas com mais sucesso dos nossos tempos é a separação que fazemos entre política e moral. É uma separação quase-intuitiva, apesar de não sabermos bem explicá-la. Mas é alguma coisa como a política pertencer à esfera pública e a moral ao plano pessoal. Ainda bem, pensamos nós, imaginem o que seria (ou o que já foi!) existir uma doutrina moral oficial do Estado. O nosso espírito democrático até se arrepia. Por isso, sobra-nos a alternativa da separação entre os dois. Política para um lado, a tratar da administração e gestão, com números e normas, para tomar decisões eficientes, objetivas, transparentes e neutras. Moralidade e os seus juízos metafísico-gasosos para outro lado, de preferência remetidos para as casas, igrejas e associações se as houver.
A certeza desta separação traz-nos tranquilidade e uma preciosa sensação de liberdade e de autonomia, de podermos escolher os nossos padrões morais sem qualquer interferência do Estado ou dos outros. Quanto à política, reduzimos-lhe a esfera que lhe compete. Expropriámos-lhe o campo da moral e com ele o risco dos totalitarismos e das inquisições. O que sobra é maioritariamente técnico, por isso deve ser decidido por especialistas, economistas e alguns políticos que provem ser autoridades nalguma coisa (certificados de mestrado e doutoramento ajudam). No final, política para um lado, moral para o outro ou, como disse alguém há uns anos, “a Deus o que é de Deus, a César o que é de César”.
Esta divisão, por mais intuitiva e moderna que pareça, quando absolutizada torna-se absurda. Porque por mais que queiramos negar – ou evitar com fugas – perguntas desconfortáveis, a política é “moralizada”. As suas decisões implicam sempre perspetivas morais, que podem gerar maior ou menor choque cultural e controvérsia. Porque, para o bem e para o mal – trocadilho propositado – não nos conseguimos separar de juízos sobre o que é bom, de conceções sobre o que é o bem e a justiça ou a vida boa.
Porque, para o bem e para o mal – trocadilho propositado – não nos conseguimos separar de juízos sobre o que é bom, de conceções sobre o que é o bem e a justiça ou a vida boa.
Um primeiro exemplo: a criação de uma lotaria do património, recentemente anunciada pelo Governo, com o objetivo de angariar fundos para apoiar o setor da cultura. Esta medida representa uma solução economicamente eficiente: os portugueses gastam tanto em raspadinhas (em média cada português gasta 160 euros por ano; em Espanha, 14 euros), que é quase certo que funcione do ponto de vista económico. No entanto, uma política destas levanta importantes questões morais: existindo uma “epidemia da raspadinha” em Portugal, e sendo esta uma atividade aditiva que aflige sobretudo os mais pobres, faz sentido que o Estado promova ativamente jogos de azar? Talvez uns respondam que sim, outros que não, mas o ponto é anterior à resposta final: uma política como esta não é moralmente neutra. Pelo contrário, ao adotar a lotaria como instrumento político, normaliza este tipo de jogos e apela à participação. Quer o Estado queira quer não, a sua política adota uma determinada conceção dos jogos de azar e de como são moralmente bons ou, pelo menos, não são moralmente maus.
No limite, este tipo de juízos é transversal a todas as políticas. Quando alguma coisa é decidida politicamente, existe uma dimensão moral que lhe subjaz e sucede, como demonstram exemplos corriqueiros e recentes da nossa discussão pública. Vender livros durante o confinamento porque se considera a leitura como uma atividade essencial – que não é, biologicamente falando, num país onde 40% dos cidadãos lê um livro por ano – é um argumento moral de quem considera a leitura como uma atividade positiva, integrante do ideal da boa vida. Decidir se os teletrabalhadores devem ser alvo de um imposto suplementar para ajudar o resto da população é uma decisão moral e não só de eficiência económica. Requer juízos sobre o valor da solidariedade, sobre aquilo que devemos uns aos outros enquanto concidadãos, sobre o sentido de viver em sociedade. Sem este tipo de considerações sobra-nos apenas o juízo sobre a eficiência económica, que não nos chega para decidir. Aliás, quando deixada ao abandono, a lógica da eficiência não conhece limites e tudo justifica em seu próprio nome.
Com maior ou menor alcance, a vasta maioria das decisões políticas (para não dizer todas) têm sempre a capacidade de formar a cultura moral social, dependendo de muitos fatores: da importância mediática e política da decisão, da sua abrangência, da área da vida social a que se destina, do grau de concordância ou conflito com a cultura moral predominante, etc. Mas, quer queiramos quer não, a política não se consegue desligar da moral e de considerações sobre o que é o bem e o mal. Acreditarmos e aceitarmos esta ilusão tem, pelo menos, dois efeitos para além do facto de não resultar: adormece a nossa consciência moral, tornando-nos menos capazes de raciocinar moralmente, e permite que outras forças moldem a nossa consciência moral enquanto dormimos. No final, perdemos aquilo que é mais próprio da humanidade: a capacidade de conhecer o bem e o mal, e agir em liberdade.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.