A oração da criança e do pardal

Admitamos: às vezes é difícil “arranjar tempo” para rezar. No meio dos afazeres dos estudos e trabalhos, compromissos e missões, há momentos em que tudo parece mais urgente e necessário. Afinal: para que serve a oração?

Conta-se que, certo dia, um padre, vendo alguns meninos a brincar, decidiu chamar um deles e perguntou-lhe: “Se soubesses que ias morrer daqui a meia hora, que farias?”, ao que o pequeno respondeu: “eu iria para a capela rezar”; em seguida, chamou outro que à mesma pergunta retorquiu: “eu ia-me confessar”. Por fim, o padre, de nome João Bosco, chamou outro pequeno rapazito que por ali brincava – Domingos Sávio – e perguntou-lhe: “Se soubesses que ias morrer daqui a meia hora, que farias?” O menino fitou-o e respondeu alegremente: “Eu? Eu continuaria a brincar”.

Há uma cândida naturalidade na forma como os santos vivem a sua relação com Deus. Esta história, que me recordaram há dias, despertou-me para isso mesmo. Com eles rasga-se o Céu e o presente é vivido como dom. O passado já não aprisiona nem o futuro atormenta: subsiste a gratidão pelo presente. A relação com o tempo e o espaço dá-se no campo da eternidade.

Quanto a nós, santos em esboço, a relação com o tempo acontece na maioria das vezes num campo de batalha. Compreende-se então a experiência dos gregos antigos, que o personificaram no Deus Chronos: o Deus do tempo que devora os filhos. Os nossos planos, a curto, médio ou longo prazo, podem sair frustrados, o tempo escapar-nos como a areia por entre os dedos. Quando damos conta, já passou.

O passado já não aprisiona nem o futuro atormenta: subsiste a gratidão pelo presente. A relação com o tempo e o espaço dá-se no campo da eternidade.

Alegra-nos, todavia, saber que também os discípulos de Jesus experimentaram a “falta de tempo”. Conta-nos S. Marcos que “a multidão dos que chegavam e partiram era tão grande que eles nem sequer tinham tempo para comer” (Mc 6, 31). E é precisamente nestas circunstâncias que os evangelhos nos narram que Jesus se retirava para fazer oração.

Admitamos: às vezes é difícil “arranjar tempo” para rezar. No meio dos afazeres dos estudos e trabalhos, compromissos e missões, há momentos em que tudo parece mais urgente e necessário. Afinal: para que serve a oração?

Confesso que tenho uma afeição particular por este tipo de perguntas: aquelas que encerram em si uma falácia a que só uma resposta desconcertante poderá responder. É que, de facto, a oração não “serve” para coisa alguma. Ela não se insere na lógica utilitarista do consumismo nem nas luzes da sociedade de performance em que vivemos. Mais apropriado é o pedido humilde dos discípulos: “Senhor, ensina-nos a rezar”. A oração é a aprendizagem humilde e relação que cresce como o grão de trigo semeado à terra.

Para aprender a rezar, será razoável pedir a Deus o olhar da águia. Ela ergue-se, em altos voos para contemplar a vida em modo panorâmico. Como resposta, talvez se receba de Deus os olhos do pardal: o passarinho que se aproxima para ver. Assemelha-se a Moisés que, diante da sarça, se adentra para chegar a um encontro e descobre um Deus com quem aprende a falar face a face, como quem fala a um amigo (Ex 33, 11). É assim a oração do pardal: a do orante que não precisa de saber tudo e que busca a oração como quem procura o unum necessarium: o Pai-nosso que, estando nos céus, se revela nas “coisas da terra”.

Para aprender a rezar, será razoável pedir a Deus o olhar da águia. Ela ergue-se, em altos voos para contemplar a vida em modo panorâmico.

Assim é a oração dos santos: como pardal que se aproxima e como criança que dança e brinca e que nunca se cansa. Recordo a conhecida pintura de Matisse: “Dança”, que suscita um inexplicável encanto pela gratuidade. Na nossa sociedade marcada pela falta de tempo, é belo e bom pensar na oração como inserção no baile divino. Neste sentido, são proféticos os gestos da criança que dança diante dos pais. Melhor: da criança que dança com os seus pais – sem medos e sem preconceitos – na autenticidade do que é e com tudo o que tem para dar, aceitando que tropeços farão parte do processo e descobrindo que o essencial é deixar-se conduzir.

Tal como numa dança, a oração exige o esforço primeiro da aprendizagem. Depois, como em tudo nas coisas de Deus, chega por fim a Hora em que o gozo ultrapassa o esforço e a vida passa a ser encarada de outro modo. O antigo peso que a oração trazia passa a suave jugo e leve carga. Por isso, o quadro de Matisse “Dança” representa aquilo a que podemos chamar o âmago da oração. Em cada ato orante assemelhamo-nos à sabedoria, que “dançava” diante do trono do Deus (cf. Prov 8, 30). Assim gostava Guardini de pensar a liturgia: como a sublime “inutilidade” do jogo da criança. Como seria bom entrarmos na lógica de reaprendizagem do valor da inutilidade. Deixar-se, por fim, ser obra de arte que Deus continuamente cria e contempla e redescobrir a oração da criança e do pardal.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.