À minha avó

Amanhã é dia de lembrar que os afetos negativos, como a tristeza e a dor, também são fundamentais para o nosso crescimento. Não há crescimento sem dor. Amanhã é dia da palavra saudade. Obrigada, avó.

O outono cheira sempre ao perfume das maçãs da minha avó. Um perfume suave, floral, que invadia o caminho até à sua casa. A macieira ficava no muro branco da casa de pedra, por onde as videiras trepavam também, tal como eu trepava para as colher. O outono era, assim, cheiro e cor. As folhas verdes das videiras davam lugar a uma palete de cores laranja, vermelha, amarela e castanha, que se confundiam também elas com as castanhas e as abóboras espalhadas no chão. E ali, no banco de pedra encostada ao muro branco, podia fechar os olhos e sentir o cheiro suave das maçãs, trazido pela brisa suave do fim da tarde que abanava melodiosamente as folhas coloridas.

O outono também era os dias da vindima, das pessoas que iam e vinham com os baldes carregados de uvas roxas, pretas ou azuis-escuras. E no fundo das minhas memórias, vejo-me ali, pequena, parada, a apreciar aquela agitação enquanto a minha avó trazia sopa quente, que confortava mais a alma do que o corpo.

A casa da avó era, assim, um lugar mágico. A noite dava lugar a uma luz quente vinda da lareira, onde o crepitar da fogueira se cruzava com as palavras das pessoas que ali permaneciam junto da mesma, numa lua em quarto crescente que se vê nas noites limpas de outono. A casa da avó era uma fonte de afetos; os risos davam cor ao silêncio no campo e as músicas cantaroladas pela avó rasgavam a monotonia.

O outono começou a ser um tempo de maiores mudanças, de recomeços, a cada ano escolar. E entre um misto de inquietação e entusiamo, lá estava a avó, com o seu sorriso rasgado e os olhos brilhantes, tingidos de um azul celestial.

O outono começou a ser um tempo de maiores mudanças, de recomeços, a cada ano escolar. E entre um misto de inquietação e entusiamo, lá estava a avó, com o seu sorriso rasgado e os olhos brilhantes, tingidos de um azul celestial.

O outono passou a ser um tempo a correr contra o tempo, como um leito de um rio que corre inquieto. E na agitação dos dias a avó era uma pedra no rio, que segura a corrente, que protege o leito das margens.

O outono era o tempo de acordar já com o sol desperto e de (con)viver com a escuridão dos finais de tarde, onde se bebia o chá com leite frio, com a avó, ali, na mesa retangular da cozinha.

E os dias deram lugar a noites e as noites a outros dias, e os anos passaram sem sentir as badaladas do relógio de cuco da sala da minha avó. E nesse tempo, o tempo foi ficando mais lento para a avó, que esperava que o tempo passasse devagarinho.

Tal como as folhas se desprendem das árvores e rodopiam no ar, paulatinamente, voando com o vento para outros destinos, também a avó partiu. E na aldeia convive-se com naturalidade com a morte. A morte chega e aproxima a comunidade.

Talvez tenha sido ali, na aldeia, com a avó, que aprendi pela primeira vez o que é o sentido de comunidade, a criação de redes informais; talvez tenha sido essa vivência que me fez querer estudar comunidades, redes informais na cidade, que teima muitas vezes em afastar o outro, que não acolhe.

A avó era hospitalidade. E quando este ano, na escola da minha filha mais nova se falou em hospitalidade, acolher, cuidar de quem chega, pensei na minha avó, no calor da fogueira, nos seus olhos pedaço de céu e de como falar de hospitalidade era falar de afetos, e de como os afetos são importantes para os recomeços do outono.

Talvez tenha sido ali, na aldeia, com a avó, que aprendi pela primeira vez o que é o sentido de comunidade, a criação de redes informais; talvez tenha sido essa vivência que me fez querer estudar comunidades, redes informais na cidade, que teima muitas vezes em afastar o outro, que não acolhe.

Se é verdade que a escola se vai transformando, essa mudança parece ocorrer muitas vezes de uma forma trôpega e tão diferente de escola para escola. O peso que se coloca na matemática e no português, ou nos resultados para entrar na faculdade, parecem quebrar o sentido de comunidade da escola. A escola deve ser casa. A escola precisa de ser ser lugar de afetos, para professores e alunos; entre professores; entre alunos. Um leque vasto de estudos científicos, incluindo estudos com neuroimagem, tem mostrado que as emoções têm um peso substancial na nossa atenção e memória, no raciocínio e na capacidade de resolução de problemas, aspetos intimamente relacionados com a aprendizagem.

A escola devia ser rede. O peso da matemática e das notas não retira sentido a um verdadeiro trabalho em rede. Quantas escolas trabalham com a comunidade? Quantas escolas abraçam projetos de voluntariado com idosos na grande cidade? A minha avó teve a sorte de não conhecer a palavra solidão. Mas quantos idosos vivem em/na/com solidão? A escola devia ser exemplo. A escola precisa de ser exemplo. A escola precisa de ensinar a falar da morte, tal como se fala da vida; do fim dos dias; da dignidade. A escola precisa de ser hospitalidade, todos os dias.

E amanhã lembram-se as pessoas que já partiram. Amanhã é dia de celebrar a avó. Amanhã é dia de lembrar que os afetos negativos como a tristeza e a dor, também são fundamentais para o nosso crescimento. Não há crescimento sem dor. Amanhã é dia da palavra saudade. Obrigada, avó. Até um dia.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.