Numa das escolas que visitamos em trabalho, encontramos afixada à entrada aquela frase-chavão que defende que o trabalho dos professores é ensinar, e que a educação deve ser dada em casa. Compreendemos o sentido da frase, mas não é assim tão fácil separar artificialmente as águas. Somos da opinião que pais e professores partilham a enorme responsabilidade e a fantástica experiência de apoiar o desenvolvimento das crianças.
É certo que a função primordial da escola é ensinar, mas o quê? Ensinar é apoiar apenas o desenvolvimento de competências cognitivas? É privilegiar o desempenho académico em detrimento de outras dimensões do ser? Nós somos adeptas da educação holística, conceito no âmbito do qual “ensinar” é apoiar e promover o desenvolvimento de várias dimensões do desenvolvimento das crianças: a cognitiva, é certo, mas também a afetiva e emocional, a física, a social e cívica, a criativa e artística, e a moral e espiritual.
Nas nossas pesquisas sobre crianças e o uso de tecnologias digitais, temos constatado que está muito enraizada a associação automática da palavra “aprender” a conteúdos curriculares estritamente cognitivos. Por exemplo, quando questionámos os pais de crianças até aos 8 anos sobre quais as aplicações móveis que consideram úteis e benéficas para os seus filhos, invariavelmente elegeram as que suportam a aprendizagem do inglês e da matemática. Por outro lado, num estudo europeu em que participámos sobre o uso de tecnologias por crianças durante o primeiro período de confinamento, entre março e maio de 2020, quando questionadas sobre a sua perceção e avaliação do ensino presencial e do ensino à distância, as crianças manifestaram uma enorme vontade de regressar à escola. Claro que não era para aprender inglês ou matemática, mas para rever os professores de quem tinham saudades, e para brincar muito com os amigos no recreio!
Tornou mais evidente, para quem ainda não o tinha percebido, que na escola se aprende a saber e a fazer, mas sobretudo a estar e a ser.
O confinamento e o ensino à distância trouxeram ao de cima a enorme importância da escola enquanto palco de socialização, enquanto local de desenvolvimento emocional e social, enquanto promotora de espírito comunitário e cívico, e ainda enquanto espaço de saúde, em termos de exercício físico e de alimentação. Tornou mais evidente, para quem ainda não o tinha percebido, que na escola se aprende a saber e a fazer, mas sobretudo a estar e a ser.
Face a esta constatação, é com preocupação que acompanhamos o regresso às aulas presenciais neste desconfinamento faseado que vivemos. Observamos um grande enfoque das diretrizes gerais nas metas curriculares e na “recuperação” das aprendizagens académicas quando, na verdade, a dimensão cognitiva da educação até tem sido trabalhada através do ensino à distância.
Em muito piores condições está a dimensão física, por exemplo. Muitos clubes desportivos e escolas de dança permanecem fechados, ou sob rígidas restrições. A prática desportiva escolar também enfrenta limitações. E as crianças estão confinadas desde meados de janeiro, limitadas à prática de exercício em casa, ou em curtos passeios nas imediações.
A dimensão social tem sido colmatada através de contactos digitais, o que levou muitas crianças a aderirem precocemente a redes sociais, e a passarem mais tempo a interagir nestas plataformas, ou em jogos.
A dimensão social tem sido colmatada através de contactos digitais, o que levou muitas crianças a aderirem precocemente a redes sociais, e a passarem mais tempo a interagir nestas plataformas, ou em jogos. O estudo referido anteriormente revelou que, em Portugal, 48% das crianças até aos 12 anos acham que passaram mais tempo do que deviam na internet durante o primeiro confinamento, 44% tentaram passar menos tempo a usar dispositivos digitais e falharam, e 23% admitem que abdicaram de dormir, comer ou estar com a família para passar mais tempo online. A digitalização da socialização tem levado a uma utilização mais intensa de redes sociais e de jogos multi-jogador que, dadas as características viciantes destes conteúdos, podem colocar desafios quando for necessário reduzir estas práticas e retomar as rotinas presenciais.
E a dimensão emocional tem sido subvalorizada ou até mesmo ignorada. É normal que a situação pandémica que vivemos se reflita no estado emocional das crianças. O nosso estudo demonstra que muitas crianças se sentem nervosas, ansiosas ou até mesmo assustadas face à quantidade de notícias sobre a Covid-19 com que contactam diariamente. Outras já perderam familiares e amigos para a doença. Outras ainda apercebem-se das preocupações financeiras dos pais, ou de conflitos que possam ter surgido entre ambos. Algumas temem ir presencialmente à escola, com receio de ficarem doentes ou, pior ainda, de serem veículos de contágio dos seus pais ou avós. Estarão reunidas as condições emocionais para que se foquem nas aprendizagens curriculares?
Em virtude da pausa letiva extraordinária em janeiro, o ano letivo foi estendido até ao final de junho, entrando mesmo pelo mês de julho no caso do 1º ciclo. Há discussões sobre apoio extraordinário à aprendizagem após o seu término, e sobre escolas de verão para compensar e recuperar conteúdos. E quando se recuperará a saúde física? Haverá oportunidade para avaliar o bem-estar emocional das crianças e ajudá-las a processar esta experiência única que estamos a viver? Quando haverá tempo para conviver e brincar com os amigos?
Muitos professores reconhecem a importância destas dimensões do desenvolvimento das crianças que estão atualmente subdesenvolvidas ou negligenciadas, e procuram dar-lhes resposta dentro das diretrizes e indicações que balizam a sua ação. As entrevistas que fizemos às crianças no âmbito da nossa investigação estão repletas de testemunhos sobre professores que lhes tocaram o coração, não porque insistiram na leitura ou na correção dos TPC, mas porque os deixaram conversar com os amigos durante uma aula síncrona, porque elogiaram o seu animal de estimação que apareceu inadvertidamente numa aula em vez de os repreender, ou porque comunicaram com eles pelo WhatsApp e estavam genuinamente interessados em saber como é que eles estavam e como é que os podiam ajudar.
O que aconselhamos, é que o critério para essa reflexão e questionamento seja o bem-estar da criança, ao invés do desempenho académico e de metas curriculares.
As diretrizes, indicações e políticas são necessariamente genéricas, e cada criança é única. Compete aos professores, e sobretudo aos pais, refletir e questionar essas diretrizes, indicações e políticas, procurando a melhor opção para cada criança. O que aconselhamos, é que o critério para essa reflexão e questionamento seja o bem-estar da criança, ao invés do desempenho académico e de metas curriculares. E que estejam atentos, pois após meses de confinamento e ensino à distância, não é apenas necessário recuperar as aprendizagens cognitivas. Há que recuperar correrias e jogos de futebol. Há que recuperar gargalhadas e partilha de bolachas. Há que recuperar abraços aos avós e tempo passado nos escorregas e nos baloiços. Há que proporcionar às crianças que o sejam, em toda a sua plenitude. Talvez seja altura de a escola discutir a valorização de questões emocionais, a par do conhecimento académico, tendo em conta a formação de indivíduos equilibrados, com valores, com responsabilidade e felizes.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.