A culpa é do politicamente correcto

Há um sentimento de desconforto mais ou menos generalizado. Perante este cenário, uns dizem: é o verniz do ‘politicamente correcto’ a estalar.

Desde há uns anos a esta parte, sente-se no ar uma atmosfera tensa, como se o mundo estivesse «à beira de um ataque de nervos». É provável que, em termos factuais, pouco tenha mudado com relação a outras épocas: não haverá mais corrupção do que antes; amar custa-nos hoje o mesmo que custava a Shakespeare; continuamos a guerrear invocando valores, quando o que nos move são os poderes; e ainda há vizinhos capazes de emprestar uma dúzia de ovos. No entanto, é inegável que a «sensação térmica» é bem menos amena. Efectivamente, há um sentimento de desconforto mais ou menos generalizado, que atravessa fronteiras, invade conversas de café e salpica ecrãs com mensagens inflamadas. Perante este cenário, uns dizem: é o verniz do ‘politicamente correcto’ a estalar.

1. Corrigir a linguagem para corrigir as mentalidades
Na sua versão recente, o politicamente correcto liga-se, desde logo, a uma preocupação com a linguagem. Nas décadas de 1980-90, várias universidades norte-americanas (e não só) lançaram «códigos de linguagem» que sancionavam o uso de expressões que pudessem estigmatizar grupos específicos. Obviamente, a medida tinha um alcance maior. A mudança de linguagem insinuava uma tentativa de mudança de mentalidades. Considerando o contexto norte-americano, onde a discriminação negativa pulula, a mudança parecia positiva. Quem sabe se, evitando a palavra «preto!», se consegue eliminar o racismo – e assim sucessivamente. Contudo, os efeitos parecem ter sido outros. Como dizia José Pacheco Pereira, numa crónica de 2007:

Os efeitos devastadores do ‘politicamente correcto’ chegam ao vocabulário, à codificação dos costumes, à censura, aos tribunais, às universidades, à teologia. As histórias aos quadradinhos de Walt Disney foram expurgadas, os cigarros apagados de filmes antigos, a “negação do holocausto” e do genocídio arménio foram criminalizados, a obra de Fernão Mendes Pinto foi recusada numa colecção da UNESCO pelo seu conteúdo colonialista e agressivo contra os não-europeus, os livros para adolescentes de Enid Blyton foram reescritos, os murais da Assembleia da República representando a submissão de uns negros a Vasco da Gama não podem ser mostrados a governantes africanos, o Charlie Hebdo foi a tribunal por causa das caricaturas que fez a Maomé, a ópera alemã encerrou um espectáculo em que aparecia a cabeça cortada do profeta, e um imenso etc. que cresce todos os dias.
José Pacheco Pereira, «Hábitos velhos e relhos», in Público, 31 de Março de 2007.

 

O que se nota, neste e noutros (muitíssimos) comentários, o politicamente correcto tornou-se sinónimo de uma forma de policiamento da linguagem. Em nome de uma determinada agenda – religiosa, política, artística, ética -, vigiam-se os discursos e impõe-se uma certa «narrativa». Para não ferir sensibilidades, esteriliza-se a história e a diversidade de convicções.

 

2. De esquerda, do centro ou da direita?
Tudo leva a crer que é (ou pode ser) de todos, a seu modo. Numa descrição genérica, poderíamos dizer que o ‘politicamente correcto’ corresponde àquilo que cada facção reprova nas restantes, e que urge denunciar e transformar. Para a esquerda ‘clássica’ trata-se de um sistema de costumes (morais, sociais e económicos) que prejudica os mais fragilizados – mulheres, trabalhadores, grupos étnicos, etc. -, privilegiando interesses particulares. Para a direita ‘tradicional’, trata-se de um sistema ideológico que interpreta a realidade social de forma enviesada, pondo em causa o património colectivo (história, valores ético-morais) e pessoal (propriedade, economia).
Durante o Estado Novo, a esquerda ‘clássica’ tomava o tríptico «Fátima, Fado e Futebol» como expressão de um estilo politicamente correcto. Debaixo dessas palavras estava uma determinada política de valores morais, de gostos e de hábitos de socialização. Foi contra esse modelo que se insurgiram. Na óptica de uma direita ‘tradicional’, as políticas actuais de vários governos/ partidos de esquerda também são acompanhadas de um discurso politicamente correcto. Debaixo da ideia de um «Estado que vela pelos direitos e liberdades dos cidadãos» está também um conjunto de pressupostos éticos, económicos e sociais, cujos efeitos são criticados por vários partidos da direita ‘tradicional’. Por conseguinte, ‘esquerda’ e ‘direita’ são simultaneamente produtoras e vítimas de discursos politicamente correctos, conforme as circunstâncias.

 

3. Fazer política ‘correctamente’
Visto sob outro ângulo, há algo de ‘correcto’ nesta ‘política’. Enquanto expressão de uma visão da sociedade, o politicamente correcto (de esquerda ou de direita) resume certas preocupações importantes: direitos das mulheres, luta contra o racismo, democratização do ensino, problema das desigualdades salariais, persistência de classes sociais que não convivem, incentivo ao investimento, religião e espaço público, educação sexual, etc. Porém, o seu estilo paternalista cria um glossário de palavras proibidas («comunista», «fascista», etc.) que impede a discussão. Fala-se de mulheres, é-se rotulado de feminista. Fala-se de desigualdade salarial, ou de esquerda, é-se acusado de comunismo. Fala-se de desenvolvimento económico, logo vem o rótulo de capitalista extorsionista. De facto, a questão não está em evitar palavras, nem em procurar um género gramatical neutro, ou mesmo em recontar a história. Cada uma dessas palavras sinaliza uma dificuldade real (histórica, social, económica, política, religiosa) que deve ser discutida com seriedade, sem rótulos nem agendas. Mas isso só será possível se aprendermos a olhar a pluralidade não como um erro, mas como um desafio a pensar melhor.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.