Ouça aqui este artigo:
Lembro-me de ler “Os Lusíadas” na escola. Sempre gostei de ler e tenho o melhor exemplo de leitor em casa. Nas estantes e fora delas os livros amontoam-se nas diferentes divisões. Alguns lidos, outros relidos muitas vezes, outros por ler, só para ter e guardar como uma relíquia para passar de geração em geração. A minha mãe sempre me incutiu este desejo, esta ideia de que ler era um dos bens mais preciosos. Um privilégio que não se podia desperdiçar. Uma viagem sem retorno. Uma vez perguntei-lhe para quê comprar tantos livros se depois ninguém os ia ler. Respondeu-me que a herança mais importante que nos deixava eram aquelas histórias.
Lembro-me de ler “Os Lusíadas” na escola. Foi talvez aí que realmente me entusiasmei com a beleza da leitura e passei a valorizar o que a minha mãe me disse. Esmiuçar as palavras de um poeta e tentar alcançar o génio que escondia cada verso. Deixar-me navegar naquele mar sem fim e viver o âmago cru das sensações que despertavam em cada canto. Levar no coração aquele legado e fazer daquela também a minha história. Ler tornou-se a partir daí um ato de amor, para com os livros, com a arte, com a humanidade e as histórias que temos para contar. E não pode haver maior herança que as narrativas que nos habitam, que nos apaixonam e que nos fazem sonhar a forma como vivemos.
Com Camões aprendi a ler de verdade. Mas aprendi também a ser português. A navegar ondas altas num barco pequeno e a desafiar ventos e marés à procura de um mundo novo, não para possuir, mas para abrir horizontes. A quebrar com o casco as ondas de preconceito e a descobrir a beleza em cada um, para ser feito do mundo. A morrer pelas ideias e pelas pessoas, pelo nós e não pelo eu. A querer dar sentido ao trabalho e ao esforço, em prol de algo maior. A olhar a humanidade com esperança.
Naqueles versos perguntei-me quem sou e o que quero e percebi os genes lusitanos que me correm no sangue. Conheci a minha história e a daqueles que me criaram. Aprendi a orgulhar-me das minhas raízes. A respeitar a tradição e olhar com fascínio os mitos e lendas de que somos feitos para continuar a escrever esta história de identidade. Também a entender os males e os erros do passado, os infortúnios da vida e a vergonha e tristeza de sermos esquecidos pela nossa própria gente. Mas ao naufragar, não baixei os braços e nadei com Camões até terra firme, levando a vida naqueles braços esticados e punhos bem fechados. Aprendi a sonhar com um mundo maior e melhor.
Naqueles versos perguntei-me quem sou e o que quero e percebi os genes lusitanos que me correm no sangue. Conheci a minha história e a daqueles que me criaram. Aprendi a orgulhar-me das minhas raízes. A respeitar a tradição e olhar com fascínio os mitos e lendas de que somos feitos para continuar a escrever esta história de identidade.
Vivi na pele a tristeza alegre da saudade e abracei quem mais amo como se me despedisse na praia em Belém. Levei no coração apertado o passado que vivi com os olhos postos no futuro. Camões ensinou-me a saber reconhecer as minhas lágrimas na cara daquelas mulheres que soluçavam pelos filhos e a dar voz às suas súplicas. A chorar a mudança e o tempo que não volta, mas em tudo querer novidade.
Por causa de Camões carrego a ânsia de chegar e nunca estar satisfeito. De não me contentar com pouco. A não me contentar de estar contente. De criticar como os Velhos do Restelo, mas de ver com o olhar de uma criança. De me deixar levar ora pela torrente da melancolia ora pela euforia de um apaixonado. A ser impulsivo e ter o coração na boca, a falar bem alto e dar grandes gargalhadas. A querer desafiar, ser provocador, revoltar-me e não ter medo de criticar os males e cantar liberdade. Aprendi a amar loucamente como fogo que arde sem se ver e a dizer adeus naquela triste e leda madrugada.
Aprendi a língua portuguesa e a importância dos livros, do teatro e da poesia. A importância da cultura para me definir e existir enquanto ser humano e o quanto falhámos em valorizá-la e ainda o fazemos passados cinco séculos.
Estes dias, fui procurar o livro lá em casa. Tinha a certeza de que o tínhamos algures. Vasculhei por todo o lado. Nada. Ironia da vida. Até nisso ele teve culpa ao condenar-nos como povo ingrato.
Aprendi a sermos todos nós. Aquilo que em nós pode ser bom e mau. Percebi que a culpa de sermos portugueses como somos é de Camões. Bebi dele, da sua vida e obra, a alma e essência portuguesas. Já não preciso d’ “Os Lusíadas”. Já não preciso de os ler para ser Camões.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.