Neste tempo dos nossos confinamentos, há uma outra doença omnipresente para além da novela pandémica, e aquela é uma velha conhecida: a corrupção. Não sei que espécie de animal tece uma teia como esta, mas nela se têm visto envolvidos – com grande mediatismo, ainda que muito se deva a investigações judiciais ainda em curso – atuais e antigos autarcas, deputados, membros de governo, banqueiros, mecenas e dirigentes desportivos. E o país contempla a teia que confirma suspeitas antigas.
Diante disto, abunda um sentimento de descrença, de apreensão e de uma certa resignação, sentimentos que creio que todos sentimos ou com o qual todos tivemos contato, nem que seja sob a forma de tentação. Todo o sentimento exige uma tomada de posição da nossa parte, seja esta uma ação ou uma omissão: nós não somos somente responsáveis por aquilo que fazemos; somos também responsáveis por aquilo que deixamos por fazer. E aqui concentra-se a parte mais grave e mais séria do atual contexto político, pois creio que a mudança de que precisamos hoje em dia não se fará com lideranças outras ou protagonistas novos. A mudança não chegará por mudarmos de caras, mas sim por mudarmos de hábitos, de um reconhecer em primeiro lugar que não somos donos da realidade, mas servos. Servos, não da realidade, mas sim servos daquilo que nos possui e nunca conseguimos plenamente agarrar: servos do Bem, da Verdade e da Justiça.
A corrupção com que nos encontramos hoje é aquela sempre velha prática da conquista de poder. E acreditamos que por a corrupção ser tão antiga como a civilização, que aquela é inevitável, e que faz parte de nós. Pobres de nós, que pensamos e esperamos tão pouco do género humano quando nos deixamos seduzir por esta rasteira visão da pessoa. A corrupção, seja ela económica ou moral, não é um obstáculo intransponível ao bem: a corrupção é um convite a entrar.
Todo o sentimento exige uma tomada de posição da nossa parte, seja esta uma ação ou uma omissão: nós não somos somente responsáveis por aquilo que fazemos; somos também responsáveis por aquilo que deixamos por fazer.
Para aqueles que são cristãos, isto deveria ser por demais evidente, pois é essa a história da salvação: no meio de tanto errar humano, Deus envia o seu Filho para nos abrir um caminho de liberdade, para demonstrar como a graça rasga horizontes inesperados no meio da desesperança. Olhando os Evangelhos, a lógica de Jesus é bastante clara: onde abunda a dor, onde se dá o descaminho e o desencontro, é aí que Jesus vai para dar a paz. Ele, como Filho de Deus, é a paz de Deus. Os cristãos, como batizados, são chamados a imitar Jesus, a ser oportunidade, com as suas vidas, para a graça de Deus atuar eficazmente no mundo.
O Deus em quem acreditamos abriu o caminho da missão com a sua Encarnação. Nós não nos podemos dar ao luxo de não encarnar, de passar ao lado, de contornar o lugar que nos custa habitar. E ainda menos ter a presunção de habitar o mundo como justos autojustificados. Somos chamados a ser testemunhas de uma esperança real e tangível para a humanidade, a ver e agir como profetas, como aqueles que já viram e já vivem o que este lugar é: bênção de Deus para nós e para todos. A política, a banca, o trabalho, a universidade, a minha paróquia, a minha casa, são lugares de bênção, santos e a santificar com a presença de Deus. Mais tenebroso que um lugar de pecado é a evasão a seguir de Cristo num momento em que este nos chama a ser luz.
Crentes, ou não, não nos deixemos dominar pela desesperança ou pelo sentimento de impotência diante de um estado de coisas francamente desanimador. Assumamos, com coragem e esperança, a presente situação como um chamamento à nossa ação. Principalmente os crentes, creio que somos chamados a viver, não imunes a estados de ânimo, mas com a determinação deliberada de atravessar lugares desafiantes rumo à única promessa que interessa, a da vida verdadeira que nos mostra Cristo Jesus: dar a vida fazendo a vontade do Pai, dar a vida sendo sinal da misericórdia e da justiça divinas. Desta forma, podemos viver como quem sabe que a corrupção não é o estado inevitável de coisas, mas um convite a entrar, e a ser luz.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.