Num mundo cada vez mais individualista, o caminho do autoaperfeiçoamento é umbilical. Os indivíduos procuram ter mais mindfulness, melhorar o seu fitness, reduzir a sua percentagem de gordura corporal, reduzir a pegada ecológica, melhorar a dieta, ter hábitos de consumo mais responsáveis, curar as suas práticas digitais, cultivar a sua mente, procurar educação que os diferencie, eventualmente traçar algum caminho de espiritualidade. E onde está o outro?
Patologicamente introvertida, desgostosa com o mercado tradicional de trabalho, e enfadada da vida urbana, compreendo melhor que ninguém a pulsão para o campo, a fuga da poluição da cidade; agradeço todos os dias pelo teletrabalho, e sonho acordada com uma vida reclusa e isolada. Mas se nenhum Homem é uma ilha, o caminho da santidade (do autoaperfeiçoamento, ou o que lhe queiramos chamar) não se pode trilhar nem sozinho, nem virado para dentro.
Para lá dos dias de eleições, raramente se fala no cumprimento de deveres cívicos. Para lá do confronto entre ideologias que competem para ganhar espaço no currículo escolar, raramente se fala de formação cívica a sério. Se a capacidade de sermos cidadãos e pessoas inseridas em comunidades parte de conhecermos os nossos direitos e o nosso papel, a condição de cidadania ou membro de uma comunidade não existe no vazio ou numa estase; é uma relação dinâmica e que exige animação por iniciativa do próprio. São as ações de pessoas individualmente consideradas que vivificam instituições, organizações, e põem o país e o mundo a funcionar. Porque é que esse é um papel que só compete aos outros?
Mas se nenhum Homem é uma ilha, o caminho da santidade (do autoaperfeiçoamento, ou o que lhe queiramos chamar) não se pode trilhar nem sozinho, nem virado para dentro.
Reconhecendo a possibilidade de nos dedicarmos à cidadania é um luxo e um privilégio longe de ser universal, e que o tempo é um recurso cada vez mais escasso e precioso, reflito que em que todas as pessoas têm uma justificação para as suas falhas (a verdade é que se procurarmos desculpas, temos sempre uma ou duas), Contudo, frequentemente são as pessoas com mais razão para não o fazer, menos rede de apoio, menos posses, as agendas mais complicadas e mais dificuldades, que mais se dão aos outros com regularidade. Diz a sabedoria popular que de boas intenções está o inferno cheio. A verdade é que não basta ter valores, há que vivê-los. Porque à mulher de César não basta ser…
Como quando se começa a treinar para uma corrida, custa mais correr quando somos sedentários e não estamos habituados ao movimento. Numa sociedade que cultiva produtividade e resultados, das primeiras vezes vai custar estar a “perder tempo” em reuniões, em trabalho invisível, numa empreitada da qual não beneficiamos diretamente monetariamente, não vai dar tração ao LinkedIn ou gostos nas redes sociais. A cidadania não vende, não rende, está fora de moda, não dá endorfinas, e na maioria das vezes consegue ser frustrante. É a vida!
Fora isso, nem todas as formas de exercício da cidadania são feitas para todos. Pessoalmente, não tenho vocação, paciência, jeito ou interesse para a política partidária nacional. Sem pessoas que se dedicassem a ela não teríamos país, e admiro e respeito os meus amigos que se entregam a esse chamamento. Mas fora disso, há a política local, o associativismo, o voluntariado, a filantropia — todo um universo de maneiras em que a pessoa se pode construir dando-se, da forma que puder, em que pode enriquecer partilhando-se, em que se pode submergir nas dores e inquietações das comunidades a que pertence e fazer parte do remédio dessas aflições, em que pode ser autora da arquitetura da comunidade do amanhã. Sustentabilidade intergeracional é também servirmos de modelo para os próximos, e cultivarmos nos nossos filhos hábitos de compromisso cívico, não vivendo de costas voltadas para os outros.
Talvez seja mais importante perguntar se em todo esse tempo escasso, que conseguimos transformar em tantas horas de redes sociais e sofá, talvez não caiba um bocadinho para sermos e estarmos para os outros com regularidade, com sentido de missão e espírito de serviço.
Por isso, para 2023, de todos os 12 desejos ou práticas, se calhar em vez de nos comprometermos com abraçar mais um passatempo aburguesado, conhecer mais um destino paradisíaco, começar a praticar um desporto da moda, aprender mais uma língua exótica, ou ver 20 séries na TV, talvez faça sentido indagar se a nossa jornada de autoaperfeiçoamento está equilibrada. Talvez seja mais importante perguntar se em todo esse tempo escasso, que conseguimos transformar em tantas horas de redes sociais e sofá, talvez não caiba um bocadinho para sermos e estarmos para os outros com regularidade, com sentido de missão e espírito de serviço.
A cidadania é um músculo que se exercita; se não a pusermos em prática, atrofia e eventualmente morre. Hábitos de cidadania saudáveis são tão importantes como o exercício físico, práticas de saúde mental, e uma vida espiritual sã. É fundamental criar memória muscular de serviço, para que a disponibilidade e o comprometimento cívico sejam segunda-natureza. Para lá da esmola desafetada, da caridadezinha beata, ou da solidariedade ideológica. Não se deve dar o nosso tempo aos outros porque queremos que se reconheça que, no fundo, somos boas pessoas; o caminho é inverso. Só somos boas pessoas, pessoas completas e inteiras, se pusermos quotidianamente em prática os valores que defendemos. É ótimo deixar de fumar, reduzir o desperdício, melhorar a silhueta, consumir menos produtos animais. Mas, para além disso, no próximo ano que causa vais abraçar?
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.