A campanha das legislativas já lá vai… e o que não foi na campanha?

Gostaria de aproveitar esta oportunidade para chamar a atenção para temas que não estiveram na campanha mas que pela sua importância merecem reflexão de todos nós.

Não pode o modesto autor deste humilde texto achar que sobretudo Catarina Martins e Jerónimo de Sousa estivessem atentos ao texto produzido e publicado no presente portal a 21 de outubro de 2021 (em plena discussão na generalidade da proposta de Orçamento do Estado para 2022) intitulado: “‘Squid game’ ou o Orçamento do Estado para 2022”.

No entanto melhor teria sido efetivamente, sobretudo para BE e PCP/PEV, terem estado atentos àquelas entrelinhas, aquilo que naquela altura já seria previsível e que está no parágrafo final daquele texto: “(…)No entanto, creio mesmo que a posição até “mais cómoda” acaba por ser a do Governo. Para o Primeiro-Ministro, António Costa, caso se confirme o “pior cenário”, o de um “chumbo” do Orçamento de Estado, a principal consequência será ir a votos, mas numa situação vantajosa, pois parte como quem negociou e se propõe executar o já em marcha Programa de Recuperação e Resiliência, e de quem tentou ao máximo chegar a acordo para viabilizar a proposta de Orçamento do Estado (em que impôs como linha vermelha as auto-denominadas “contas certas”). Estes dois trunfos permitem a António Costa conquistar o centro político, suportado por uma narrativa que lhe permitirá apostar no voto útil ao centro para evitar a mais que previsível formação de um Governo com incidência e influência da direita radical, populista e xenófoba.”

De todo o modo isso já faz parte da história. A verdade é que o PS ganhou as eleições conquistando uma maioria absoluta com 119 em 230 deputados. Já muito se escreveu sobre o que levou a tal resultado, não vou ser mais um a discorrer sobre as virtudes do discurso político do apelo e depois “desapelo” à maioria absoluta, das sondagens mobilizadoras, do gato Zé Albino, enfim… em democracia é o povo que decide, e está decidido.

Gostaria de aproveitar esta oportunidade para chamar a atenção para temas que não estiveram na campanha (bem sabemos, a agenda mediática muitas vezes é feita de soundbites e os programas de governação passam relativamente despercebidos…lamentavelmente, diria eu) mas que pela sua importância merecem reflexão de todos nós, e um deles prende-se com a demografia. Já alguém se esqueceu dos dados preliminares dos Censos de 2021?

O Papa Francisco no início de janeiro “escandalizou” muitas mentes ao dizer algo que é óbvio e até “lapalissada”: “(…) os casais que escolhem ter animais de estimação em vez de crianças estão a agir de forma egoísta” (…) e que “(…)renunciar à maternidade e à paternidade está a diminuir a nossa humanidade”.

Não se está com esta afirmação a pôr em causa quem tenha animais de estimação nem os progressos alcançados nas áreas da proteção e saúde animal nos últimos anos. Essas conquistas são conquistas civilizacionais e não devem ter retrocesso. O que se está a chamar a atenção é que os casais que têm condições para ter filhos e por uma questão de “comodidade” resolvem não ter filhos por opção, em primeiro lugar, podem não estar a pensar numa das mais sublimes formas de realização pessoal que é a paternidade/maternidade e, por outro, não estão a pensar na sobrevivência da espécie humana, e isso pode ser egoísta, de facto.

Mas esta discussão não pode ser colocada só estritamente num plano ético/moral. A sobrevivência da espécie humana (pelas baixíssimas taxas de natalidade na Europa e particularmente em Portugal) pode e deve ser encarada como um problema político de médio-prazo, pelo menos tão premente como as “badaladas” questões das alterações climáticas.

A sobrevivência da espécie humana (pelas baixíssimas taxas de natalidade na Europa e particularmente em Portugal) pode e deve ser encarada como um problema político de médio-prazo, pelo menos tão premente como as “badaladas” questões das alterações climáticas.

Sendo um problema político, ele deve ter tratamento político. Lamentavelmente esteve ausente de (praticamente) toda a campanha eleitoral. De facto, falar de crescimento económico ou aumento dos salários é relevante para que a taxa de natalidade comece a inverter o ciclo decrescente, mas será suficiente? Parece-nos que não.

Tem de haver uma política de promoção de habitação a custos acessíveis (que permita uma emancipação mais precoce dos jovens), quer aumentando o parque público de habitação, quer aumentando os incentivos fiscais aos proprietários que coloquem ativos no mercado de arrendamento não especulativo. Uma agenda para a política do trabalho que permita promover a conciliação efetiva entre a vida profissional e a vida familiar (não sei se a agenda do trabalho digno e a propalada semana de 4 dias não deviam efetivamente avançar para o topo da agenda). A falada política de aumento do rendimento disponível para os mais jovens (através do IRS jovem) e a anunciada redução ou isenção do valor das creches pode e deve também ser considerado. Paralelamente, deve continuar o caminho para a gratuidade das propinas no ensino superior e o reforço dos manuais e livros de exercícios gratuitos para o 2.º ciclo e o ensino secundário.

São políticas desta natureza que podem começar a inverter o rumo dos últimos anos e a curva da taxa de natalidade.

Muito caminho há ainda por fazer.

Transição digital: um dos temas que esteve aparentemente afastado desta campanha, mas fundamental para o futuro de um país que se quer mais moderno e competitivo num mundo a cada dia mais global. Como dizia abundantemente João Vasconcelos (ex-Secretário de Estado da Indústria que nos deixou muito prematuramente), nesta 4.ª revolução industrial, eminentemente tecnológica, e onde a inovação, a ciência, a investigação e o conhecimento são a pedra de toque e não a riqueza territorial ou a proximidade às principais praças financeiras, Portugal não parte, pelo menos, com tanta desvantagem competitiva como em relação a outras revoluções industriais antecedentes.

Há assim várias oportunidades para Portugal, mas comecemos pelo início: o que será/o que é afinal a transição digital?

Há um sem número de definições que se podem avançar, mas como leigo, a definição que posso avançar é aquela que considera a integração das tecnologias digitais pelas empresas/instituições e o impacto das tecnologias na sociedade. As plataformas digitais, a “Internet das Coisas”, a computação em nuvem, a ciência dos dados e a inteligência artificial estão entre as tecnologias mais presentes. A transição digital afeta vários setores como os transportes, a energia, as telecomunicações, os serviços financeiros, a produção industrial, os cuidados de saúde, o setor agroalimentar, e transforma a vida das pessoas. As tecnologias, em tese, podem ajudar a otimizar a produção, a reduzir as emissões e o desperdício, a aumentar as vantagens competitivas das empresas e trazer novos serviços e produtos aos consumidores.

As tecnologias, em tese, podem ajudar a otimizar a produção, a reduzir as emissões e o desperdício, a aumentar as vantagens competitivas das empresas e trazer novos serviços e produtos aos consumidores.

A mudança deste paradigma de desenvolvimento traz com ele uma série de oportunidades inovadoras, mas também potencialmente um sem número de potenciais excluídos deste processo de transformação, que devem ser protegidos. Como se tratará o processo de tributação das empresas que no seu processo de produção reconvertam empregos de pessoas por robotização? Se não houver um rendimento garantido, a quem vão as empresas vender os seus produtos? Elevados níveis de desemprego gerarão, para além de uma enorme instabilidade, um clima que compromete a paz e o próprio contrato social como o conhecemos, e são por isso temas que carecem de uma reflexão profunda e sobretudo de medidas na concertação social que permitam que esta transição digital sirva as pessoas e não as coloque umas contra as outras.

Por outro lado, medidas que pretendem ainda apoiar a transição verde da UE e alcançar a neutralidade climática até 2050, um dos aspetos mais relevantes do calendário político internacional e que coloca no topo da colina a sobrevivência do ser humano tal como o conhecemos, são também centrais. Em Portugal, estão previstas reformas e investimentos significativos nas áreas da digitalização de empresas, do estado e no fornecimento de competências digitais na educação, saúde, cultura e gestão florestal.

Para assegurar que Portugal acelera a transição para uma sociedade mais digitalizada, as opções nacionais, no PRR (Plano de Recuperação e Resiliência), assentam em cinco componentes nas seguintes áreas: capacitação e inclusão digital das pessoas através da educação, formação em competências digitais e promoção da literacia digital, transformação digital do setor empresarial e digitalização do Estado.

Pouco se debateu este tema, mas não podemos escamotear a importância do mesmo para o futuro de todos nós. Acreditemos que a agenda se concretize, e este tema, apesar de pouco ou nada abordado ao longo da campanha, venha a ter a importância que merece com o novo Governo resultante destas eleições.

Um outro assunto a que entendo que devemos dar grande importância nos tempos mais próximos, e sobre o qual pouco ou nada se ouviu debater na recente campanha eleitoral, é o mar. 

Um outro assunto a que entendo que devemos dar grande importância nos tempos mais próximos, e sobre o qual pouco ou nada se ouviu debater na recente campanha eleitoral, é o mar. Portugal é um país oceânico, com uma linha de costa de cerca de 2500 km, contando com uma das maiores zonas económicas exclusivas do mundo que se estende por 1,7 milhões de km2, incluindo uma grande diversidade de ecossistemas e de recursos. O triângulo marítimo português (continente, Madeira e Açores) constitui 48 % da totalidade das águas marinhas sob jurisdição dos Estados-Membros da União Europeia (UE) em espaços adjacentes ao continente europeu.

Acresce a importância da plataforma continental estendida para além das 200 milhas náuticas, cujo processo de delimitação está a decorrer junto das Nações Unidas, e que aumenta para 4 100 000 km2 a área abrangida pelos espaços marítimos sob soberania ou jurisdição nacional, alargando assim direitos de soberania, para além da Zona Económica Exclusiva (ZEE), para efeitos de conservação, gestão e exploração de recursos naturais do solo e subsolo marinhos, e que tornará Portugal ainda mais atlântico.

Mais do que falar da área, que elevará Portugal a um vasto império, provavelmente só com paralelo na época dos descobrimentos, a importância do mar é cada vez mais significativa quando olhamos para as alterações climáticas e para a importância que quer as Nações Unidas, quer a União Europeia dão à Economia Sustentável dos Oceanos, na qual a oportunidade de negócios e o investimento financeiro são centrais no desenvolvimento da economia azul.

Haverá mais vida para além das eleições e da campanha eleitoral, e a magnitude dos desafios exige que o Governo consiga promover uma agenda mobilizadora de todos os setores da sociedade, e que independentemente da maioria absoluta, permita que não se esgote sob si próprio!

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.