Há matérias em que é óbvia a ligação entre cultura e religião, ou, pelo menos, em que associamos mais facilmente um a outro assunto. Com essa junção em mente, comecei a deambular por temas.
Cemitérios.
Não é óbvio. Nem parece assim tão interessante, e, ainda por cima, há quem saiba escrever sobre este assunto muito melhor do que eu. Mas, se através destas linhas chegarem a Francisco Queiroz, Gisela Monteiro ou Rafaela Ferraz, considero-me bem-sucedido. (Aliás, se o seu tempo para leituras sobre cemitérios for curto, prefiro que interrompa este texto por aqui e leia esta maravilhosa entrevista de Licínio Fidalgo, historiador e responsável pelo Cemitério dos Prazeres que nos diz que a cidade dos mortos é um espelho da dos vivos.)
As nossas idas a cemitérios são esporádicas e causam uma sensação inconsciente de recusa. Não se deseja estar lá e associamos, normalmente, a momentos de dor, perda e, sobretudo, à morte, um tema que a maioria de nós, podendo, evita.
No entanto, convido-o a seguir comigo nesta viagem, a olhar para além da superfície, para descobrir que os cemitérios são muito mais do que simples lugares de descanso; são testemunhos da nossa história, da nossa cultura e da nossa humanidade. Ao desmistificar a ideia de visitá-los, encontramos uma beleza serena e uma compreensão mais profunda da vida e da morte. Entre campas e jazigos, encontramo-nos num local com significado religioso, social, étnico, político e cultural. É só apercebermo-nos disso.
Ao desmistificar a ideia de visitá-los, encontramos uma beleza serena e uma compreensão mais profunda da vida e da morte. Entre campas e jazigos, encontramo-nos num local com significado religioso, social, étnico, político e cultural. É só apercebermo-nos disso.
Em Portugal, temos o privilégio de ter cemitérios que são verdadeiros tesouros culturais. Cada um deles conta a sua própria história, com elementos arquitetónicos únicos, esculturas impressionantes e, habitualmente, uma atmosfera de serenidade (digo habitualmente porque, por exemplo, no caso Gondomar, vivem-se tempos conturbados).
Há, para todos os gostos: jazigos, sepulturas temporárias, campas rasas, sepulturas perpétuas, ossários municipais… Podemos até ver uma particularidade do nosso país: A Casa Portuguesa nos cemitérios (tema aqui desenvolvido por Gisela Monteiro) onde, espero, não façam jus à canção e estejam dois braços à minha espera.
Algumas esculturas nos cemitérios são verdadeiras obras de arte, com detalhes meticulosos que revelam as personalidades e os interesses das pessoas ali sepultadas. Ao explorar essas esculturas, somos convidados a contemplar não apenas a morte, mas também a celebração da vida.
Algumas esculturas nos cemitérios são verdadeiras obras de arte, com detalhes meticulosos que revelam as personalidades e os interesses das pessoas ali sepultadas. Ao explorar essas esculturas, somos convidados a contemplar não apenas a morte, mas também a celebração da vida.
No entanto, o interesse por cemitérios não se limita ao passado, nem está estagnado no tempo. Antes pelo contrário. O turismo cemiterial (sim, o termo existe) está em ascensão, com viajantes de todo o mundo a explorarem cemitérios. A Rota Europeia dos Cemitérios, criada pelo Conselho da Europa, destaca alguns desses locais, e promove a sua visita como uma experiência cultural e histórica enriquecedora.
O português, e bem, comemora todas os grandes acontecimentos onde haja mão lusitana. Quem é que não se recorda do Bo, o cão d’água português, de Obama? Ou de que foi com uma portuguesa que o Capitão América casou na vida real?
Assim, é com surpresa que não vejo com maior difusão a notícia de que é em Portugal que se encontra o maior jazigo privado da Europa! Trata-se do Jazigo dos Duques de Palmela, no Cemitério dos Prazeres.
Ou que existe um túmulo desenhado por um Prémio Pritzker! O túmulo de Eugénio de Andrade, no Cemitério do Prado do Repouso, foi desenhado (e oferecido) por Siza Vieira.
Falando de cemitérios do Porto podemos referir que Camilo Castelo Branco tem o túmulo mais visitado no Cemitério da Lapa, ainda que não seja o artisticamente mais bonito (desafortunado do Camilo, sempre envolto em polémicas de gosto), ou que no cemitério de Agramonte existe um monumento feito com destroços da tragédia do Teatro Baquet.
Claro que podia falar do Cemitério Père Lachaise, em Paris, onde está Jim Morrison, Édith Piaf ou Oscar Wilde. Ou do Cemitério de Highgate, em Londres, onde repousa Karl Marx e, sem relação, é famoso pelas histórias de vampiros. Mas para quê ir visitar fora se podemos ir a Leiria, ao Cemitério de Santo António do Carroscal, ou a Fão, ao Cemitério Medieval das Barreiras…?
Já reparou se no seu dia-a-dia passa por algum cemitério? Deixo o desafio de visitar, durante o próximo mês, o cemitério mais próximo de casa ou do trabalho. Há mais de 600 cemitérios em Portugal – há de haver algum que o satisfaça.
Entretanto, para entrar no espírito, sugiro ainda a leitura do recente romance a Breve Vida das Flores e, se tiver crianças, veja o filme Coco, disponível na Disney+.
Nota final: para quem é de Lisboa, acompanhe o Boletim Cultural dos Cemitérios de Lisboa e, em breve, de 7 a 15 de outubro, inscreva-se na 2ª Semana Cultural nos Cemitérios. Para quem é do Porto, esteja atento, a Irmandade da Lapa costuma ter programação nesta temática.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.