A agressividade da beleza

Para ver a realidade como é, as coisas como são, eu como sou… é preciso olhar. Sem olhar, as coisas são só coisas, não têm nada a ver comigo e esgotam a sua existência na satisfação das minhas necessidades.

Nos primeiros 4 anos da minha vida como jesuíta, experimentei viver sem telemóvel e sem redes sociais. Ao início foi estranho não estar sempre em contacto com a família e com os amigos, não poder avisar um atraso ou saber das novidades em cima do acontecimento. Contudo, aquilo que me fez mais confusão nos primeiros tempos foi o meu estar diante da beleza. No noviciado, em Cernache (onde fiz o noviciado) há uma árvore centenária na ponta do lago que nos fins de tarde, com a luz do crepúsculo por trás, ganha um deslumbre incomparável. Lembro-me perfeitamente da primeira vez em que o reparei, e do quão desconfortável me senti – eu não sabia estar ali, havia qualquer inquietação que nunca tinha experimentado e com a qual não sabia lidar.

Com o tempo, fui percebendo que experimentava o mesmo desconforto diante do mar da Ericeira nos dias de tempestade, diante do rio Mondego no parque da cidade ou das cascatas do Lindoso, e que a minha mão procurava repetidamente o telemóvel no bolso para satisfazer qualquer necessidade inconsciente de apropriação de tal beleza com uma fotografia.

Quando tinha telemóvel, não chegava sequer a ser afetado – diante de algo espantosamente belo, tirava uma fotografia, publicava para os meus amigos verem e, saciado, nem via com os olhos a realidade diante da qual me encontrava. E parecia que este costume era suficiente. De qualquer modo sentia-me protagonista da realidade que fotografava e partilhava, como se fosse meu, como se tivesse sido eu a criar ou proporcionar aquelas formas, aquelas cores, aquelas dimensões…

Quando tinha telemóvel, não chegava sequer a ser afetado – diante de algo espantosamente belo, tirava uma fotografia, publicava para os meus amigos verem e, saciado, nem via com os olhos a realidade diante da qual me encontrava.

Mas com o tempo fui aprendendo a resistir a esta agressividade da beleza e comecei a olhar. A olhar simplesmente. A estar ali sem querer tirar nada, sem querer receber nada, sem concluir, sem utilizar, de alguma forma, aquilo que estava ali simplesmente, sem razão, para eu olhar. E nessa experiência comecei a sentir a dificuldade do olhar.

Já no séc. XVIII, Kant falava da experiência do sublime como um sentimento de desprazer ou até de sofrimento. Uma experiência que faz nascer em nós a consciência da nossa insuficiência e do nosso limite na avaliação estética de tal beleza, grandeza ou potência que escapam às nossas categorias imaginativas e racionais[1].

De facto, penso ser a dor deste limite da imaginação e da razão a causar tal desconforto. A incapacidade de conter a beleza, de permanecer diante de algo maior que as minhas categorias, mais forte e incompreensivelmente gratuito. Mas acho que esta experiência é profundamente vital.

A experiência profunda e demorada do próprio limite parece-me extraordinariamente vital porque permite emergir a verdade da nossa natureza de criaturas e não de criadores.

O ser humano sempre aspirou ao poder e ao domínio (alguns defendem que esta tendência é o motor da história).  Mas na verdade, o ser humano é das espécies mais frágeis e menos adaptadas a este mundo (não lhe valesse a razão). A experiência profunda e demorada do próprio limite parece-me extraordinariamente vital porque permite emergir a verdade da nossa natureza de criaturas e não de criadores.

O autor japonês da escola de Quioto, Nishitani, dizia que a experiência religiosa é a real consciência da realidade[2]. Isto é, ver a realidade tal como ela é, sem os condicionalismos das minhas categorias e conceitos preestabelecidos intelectualmente e culturalmente. Normalmente, não chegamos a tal consciência porque vivemos constantemente entretidos nos afazeres quotidianos, confortáveis com as nossas certezas – já vimos, já conhecemos, e já sabemos o que fazer diante das poucas realidades que ainda nos espantam – tiramos uma fotografia. E não chegamos a olhar.

Para ver a realidade como é, as coisas como são, eu como sou… é preciso olhar. Sem olhar, as coisas são só coisas, não têm nada a ver comigo e esgotam a sua existência na satisfação das minhas necessidades – seja no tirar uma fotografia, seja na exploração de um animal ou no desrespeito por uma pessoa. Mas ao olhar, resistindo à agressividade da beleza, à pressa do tempo e à tendência utilitarista, revela-se em mim um mistério vital – o mistério de que as coisas existem e de que eu existo com as coisas. E daqui só pode nascer uma convivência livre e respeitosa, ecológica e sagrada.

 

[1] Cf. E. Kant, Critica do juizo estético, pág. 23.
[2] N. Keiji, La religione e il nulla, 40.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.