Salvar as histórias

Um livro para todos os dias é, assim, um convite – como há tantos outros - para um novo mundo: o da fusão entre a literatura para a infância e os livros destinados ao público de “maior idade”.

Há uns dias faziam-me aquela clássica pergunta: “se a casa estivesse em chamas e tivesses que sair a correr, o que levarias?” Poucas coisas me surgiram mas no impulso lembrei-me da obra Um livro para todos os dias, da Planeta Tangerina.

O meu exemplar acompanha-me para onde vou desde 2004. Foi adquirido em segunda mão numa altura em que há muito tinha esgotado e não havia reedições à vista. Percorri, pela primeira vez, as páginas deste livro em casa de uma amiga e pareceu-me um ultraje que eu não tivesse o meu próprio exemplar. Foi, entre algum regateio e suor que consegui, finalmente, adquiri-lo.

O formato quadrado de 16×16 faz dele um objeto curioso. Fácil de transportar, de expor, de pôr na mala, em cima da secretária, na mesinha de cabeceira. E quando se abre, a viagem pelos dias começa acompanhada de um sentimento de identificação que é inegável, um “Ah! Pois é! É mesmo isto que nos acontece na vida.”

Nas páginas de Um livro para todos os dias pode então ler-se frases curtas como: “Há dias cheios e dias em cheio. Há dias quase vazios e dias que mudam as nossas vidas. Há dias em que só pensamos no futuro e dias em que temos saudades de quase tudo. (…) Há dias em que as coisas andam para trás e dias em que o mundo anda para a frente.”

E há também aquele dia em que este livro se tornou objeto essencial para mim com as suas tonalidades simples fugindo à explosão de cores que recheiam os livros para crianças.

Um livro para todos os dias é, assim, um convite – como há tantos outros – para um novo mundo: o da fusão entre a literatura para a infância e os livros destinados ao público de “maior idade”. É neste lugar que se começa a ver o atenuar da linha que, até há bem pouco tempo, separava de forma clara o que é feito para crianças e o que é para um adulto.

O papel do livro infantil na criação de laços entre pais e filhos é indiscutível. Há várias gerações que o momento – normalmente antes da hora de dormir – é pautado pela presença de uma história lida ou imaginada e envolto em muito mimo e carinho. Uma perpetuação modernizada de rituais ancestrais de contagem em grupo de histórias que remontam ao aparecimento do fogo.

Porém, a correria dos dias que correm (permitam-me a redundância) traz, por vezes, alguma impaciência aos pais: ou porque o tempo é curto para tantos afazeres ou simplesmente porque as histórias não são atraentes para os graúdos.

Quantos de nós – principalmente aqueles que já são pais – disseram: “um dia escrevo um livro para crianças” pensando que poderíamos acrescentar algo a um mercado saturado de histórias onde o caçador mata o lobo e há sempre um final mágico e feliz para tudo o que acontece tão desfasado da realidade?

Foi aqui que o mercado editorial, felizmente, se apercebeu que poderia tornar este momento de partilha de histórias em algo não só dedicado aos mais novos mas onde os pais também podem tirar uma mensagem para si. Com a edição de obras onde as histórias são feitas de pequenos detalhes reais que constroem o dia-a-dia como aquele “em que perdemos a chave”, “os dias em que perdemos o autocarro”, “os dias silenciosos, metidos nos seus botões” ou dias em que “temos vontade de falar”, como se pode ser no livro da Planeta Tangerina, o momento de leitura passou a trazer também novas formas de olhar o mundo para os pais.

Foi aqui que o mercado editorial, felizmente, se apercebeu que poderia tornar este momento de partilha de histórias em algo não só dedicado aos mais novos mas onde os pais também podem tirar uma mensagem para si. Com a edição de obras onde as histórias são feitas de pequenos detalhes reais que constroem o dia-a-dia como aquele “em que perdemos a chave”, “os dias em que perdemos o autocarro”, “os dias silenciosos, metidos nos seus botões” ou dias em que “temos vontade de falar”, como se pode ser no livro da Planeta Tangerina, o momento de leitura passou a trazer também novas formas de olhar o mundo para os pais.

Começamos a assistir ao fenómeno, ainda que envergonhado, de adultos que oferecem livros ainda categorizados de “livro infantil” a outros adultos, arrastando no tempo um pouco mais a sensação feliz de ver o mundo com olhar simples de uma criança.

Se a literatura já tem desde sempre o poder de nos transportar e transformar os horizontes, a literatura para a infância tem agora o mesmo papel em leitores de todas as idades.

Quando em 2004, a editora portuguesa lançava Um livro para todos os dias sabia que este seria um álbum ilustrado da vida. As palavras simples de Isabel Minhós Martins cabem em todas as vidas, porque no fundo todas elas acabam por se assemelhar a um ou outro leitor. Já as ilustrações de Bernardo Carvalho não precisam de explicações pela sua sobriedade e inteligência.

Este e tantos outros livros podem estar nas estantes das nossas crianças mesmo sendo feitos para nós. É importante darmos a oportunidade de nos sentarmos, de lermos para os nossos filhos, irmãos, pares e, sobretudo para nós. Porque um mundo sem contos e imaginação não é, absolutamente, nada e há histórias que vale a pena resgatar de uma casa em chamas, nem que seja a nossa própria.

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.