“Vivo no interior de Angola, na sede do município da Ganda”. Quando em Benguela me apresento assim respondem-me, a rir, que eu vivo no “mato”. Trabalho no Alto da Catumbela (aglomerado de 20 bairros que se formaram em redor de uma fábrica de celulose, que funcionava no tempo colonial), para a Ganda-Sede trabalho “no mato”. Em torno dos 20 bairros há populações no meio das montanhas onde só se consegue chegar de mota, de onde vêm crianças todos os dias a pé para estudarem no Alto do Catumbela.
“O mato” é uma questão de perspetiva. Esta é uma terra em que tudo é uma questão de perspetiva. O rasto de destruição deixado por 30 anos de guerra funde-se com paisagens incríveis. A fragilidade das casas, das instituições e das pessoas mistura-se com a imagem das mulheres, que são autênticos “tanques de força”, a caminhar das lavras até ao mercado, com bebés às costas e cestos enormes nas cabeças, homens a carregar sacos de carvão ou lenha por quilómetros e crianças a pastorear manadas de bois. Há dias em que a chuva cai “devagarinho” e todos nós nos alegramos porque rega os cultivos e permite que se armazene água sem ter que se recorrer ao rio, ou para os sortudos da Ganda-Sede, que as torneiras funcionem até mais tarde. Há outros dias em que a mesma chuva vem com tanta força que estraga casas e lavras e traz relâmpagos que caiem sem cessar. Ouve-se as queixas de quem sofre com a inflação e a entrada do IVA, mas as casas estão cheias de familiares e amigos e há fuba (1) para dividir por todos.
É uma questão de perspetiva.
Aqui conheci um Jesus que não fecha os olhos a nada, não se acomoda com a pobreza e compadece-se com o sofrimento. Trabalha sem cessar, reforça a saúde das crianças mal nutridas e pouco agasalhadas, dá energia e força aos homens e mulheres que trabalham os dias na lavra; protege, o mais que pode, as plantações e faz das igrejas autênticos centros de segurança social e motor de quase todas as atividades culturais e formativas. Aqui também O conheci com um sentido de humor renovado! Escolhe rir-se da trapalhice das estradas, com buracos e bois, do mercado colorido e poeirento, das pessoas que se indignam mais rapidamente com o preço das perucas que do pão. À imagem do bom humor Dele, também as pessoas daqui escolhem rir, repartir e alegrar-se por qualquer pretexto.
Adotando a perspetiva de Deus também aprendi a ser feliz, e motivos não me têm faltado! Sou feliz porque o caminho para o trabalho é bonito e foi lá que aprendi a guiar, porque há sempre música a tocar em todo o lado, porque há pão quente pela tarde e a luz vem quando menos se espera. Sou feliz porque há muito por ser feito, porque as irmãs me recebem sempre como uma filha há muito perdida, porque quando enterrámos o carro em 5 minutos havia 20 pessoas a transportar pedras, paus e a sujarem-se de lama por nós. Quando veio uma grande tempestade e a casa dos nossos vizinhos inundou nós pudemos estar lá e quando a chuva derrubou a parede da nossa tia (empregada) foi a nós que ela se lembrou de ligar. De manhã, lá para as 7h30 visita-nos uma criança que é igual à personagem do “Principezinho”, que ri sem motivo e me inunda o pequeno-almoço com perguntas (que tenho vindo a descobrir serem do mais pertinente que há). Com ele é impossível não ser feliz porque tem uma paciência infinita comigo, com as minhas impaciências e limitações. Cheio de resiliência volta, dia após dia, com o mesmo sorriso. Sem dar por isso, ele foi tornando o meu coração mais manso e um dia saí da Ganda e tive saudades dele.
Sou feliz porque partilho e rezo esta minha vida de “mato” com dois amigos, que com o passar do tempo se vão tornando meus irmãos.
Sobretudo sou feliz porque tudo, absolutamente tudo, nesta terra me leva mais para junto de Deus.
Francisca Cabral
Ganda, 2019-2020
(1) Massa feita com farinha de mandioca