Quem vai conduzir?

Foi já aqui, em Angola, que me apercebi da minha grande ingenuidade relativamente a esta história da condução: não é por estar ao volante que sou necessariamente eu a guiar!

Para muitos jovens, o momento em que se tira a carta de condução vem acompanhado de autonomia, independência, um maior poder de decisão, mesmo que ligado diretamente a uma maior responsabilidade por si mesmo e pelos outros. Para mim, tirar a carta de condução também representou tudo isto. Passava a estar nas minhas mãos a decisão do caminho a seguir, era a minha vontade que definia os tempos de saída e de chegada, não dependia de ninguém. Achei que liberdade deveria ser algo assim.

É natural que gostemos de sentir que somos nós a decidir, que somos donos de nós próprios, independentes, autossuficientes, e, estar ao volante dá-nos isto. No fundo, parece-me que vamos crescendo com esta ideia de que seremos livres e mais felizes se formos nós a conduzir a nossa própria vida, e tudo o que nela acontece. Assim, traçamos um plano de viagem, compramos um GPS – só para o caso de haver estradas cortadas, e fazemo-nos à estrada, cheios de certezas.

Quando, em 2020, fui selecionada pelos Leigos para o Desenvolvimento para uma das missões de São Tomé e Príncipe, tinha o plano de lá ficar 1 ano, a trabalhar num projeto que me havia sido apresentado, levava na mala mais do que o necessário, não fosse ser preciso alguma coisa extra, e parti, na esperança de que as minhas qualidades enquanto “condutora” fossem suficientes para aquilo a que me propunha.

Os primeiros tempos em missão são sempre desafiantes! Talvez o consigam imaginar com este cenário: está um condutor experiente ao volante de um carro, já muito usado, pela primeira vez. Volta a rodar a chave na ignição, enquanto se perde, por um momento, nas cores, cheiros e movimentos da cidade que agora lhe entram pelos sentidos. Alguém, atrás, apita impaciente. Já é a terceira vez que o carro vai a abaixo – ainda não apanhou o jeito do ponto de embraiagem. O GPS não funciona, por isso baixa o vidro e pede indicações ao primeiro que se aproxima. Agradece a informação e a simpatia, mas a verdade é que não percebeu metade das referências. Decide seguir em frente, com a certeza que, passados alguns metros, terá que voltar a perguntar.

Aqui, são raras as vezes em que aquilo que planeamos acontece exatamente como o esperado. Por isso, para assumir a condução do dia a dia, vi-me crescer, entre outras coisas, em confiança e disponibilidade. Este crescimento, impeliu-me a renovar o tempo de missão, e foi sensivelmente a meio deste novo período que surgiu a necessidade de sair de São Tomé, para ir reforçar a missão da Ganda, em Angola. O plano inicial era então revisto, e voltei a viver os primeiros e desafiantes tempos, de chegar a um novo país, com um outro projeto, para partilhar casa com uma nova comunidade… Num instante, tudo mudou! Os momentos de mudança produzem sempre luz e sombra no nosso íntimo: deixar para trás aquilo que conhecemos desperta tanto o medo do desconhecido como a expetativa e ânimo que vêm da novidade.

No espaço de 1 mês, voltei a rever-me naquele condutor, que se perde a toda a hora, deixa o carro ir abaixo, e precisa de pedir indicações mesmo não conseguindo acompanhar todas as explicações que lhe tentam dar. Mas foi já aqui, em Angola, que me apercebi da minha grande ingenuidade relativamente a esta história da condução: não é por estar ao volante que sou necessariamente eu a guiar! Mais, a independência e autossuficiência não são sinónimos diretos de felicidade.

É à medida que vou crescendo em confiança n’Aquele que me guiou até aqui, que aumenta também o sentido que sinto em estar nesta nova terra de missão, cresce o ânimo no serviço, e vou-me deixando tocar por todos aqueles com quem vivo e trabalho, que com amor e paciência me guiam pelas estradas, parcialmente destruídas pelas chuvas, do Alto Catumbela, e me introduzem o umbundu (língua local).

Cá em casa, como todas temos carta de condução, é comum perguntarmos ao sair “quem vai conduzir?”. É com alegria que assumo o volante, mesmo sem fazer ideia do melhor caminho para chegar onde queremos ir. Não vou sozinha, e aceito as indicações que me vão sendo dadas. Confio naqueles que me acompanham. E porque confio, sou mais feliz.

 

Inês Sampaio
São Tomé e Príncipe – Cidade, 2020-2022
Ganda, 2022