O Meu Pé de Laranja Lima

No Monte da Caparica tenho-me cruzado com uma criança que tem mudado o brilho dos meus olhos. Uma criança que habita no meu coração e que há muito pensava ter perdido ou deixado para trás.

No outro dia decidimos ir em comunidade ao teatro ver a peça “O Meu Pé de Laranja Lima”. Já conhecia os traços gerais da obra e das aventuras e peripécias do pequeno Zezé, que, devido à incompreensão do mundo à sua volta, vai ao longo do enredo perdendo a pureza e a alegria da sua vida. Por a conhecer, a história em si não me trouxe grande surpresa, mas fui sim, arrebatadamente surpreendido pela atuação incrível do ator principal e pela forma como foi dizendo tanto de mim e daquilo que tem sido estes primeiros tempos de missão.

Fui pensando em como também há muito tempo vivia um Zezé dentro de mim… Um miúdo traquina e indomável, mas cheio de sensibilidade, pureza e de certezas relativamente àquilo que era realmente importante. Um miúdo fora do normal, que fui obrigado a fechar numa parte de mim onde não trouxesse grandes problemas a um mundo muito meu – cheio de regras e expetativas.

Estou em missão há dois meses no Monte da Caparica…. Tem sido um tempo diferente e de adaptação àquela que será a minha casa durante o próximo ano. Gosto de caminhar, do trabalho que faço, da vida comunitária, mas principalmente gosto de estar com as pessoas.

Frequentemente nas minhas caminhadas ou nos meus encontros com esta gente, os meus olhos cruzam-se com outros olhos que no seu brilho trazem um pouco do Zezé e de toda a pureza e simplicidade que fui perdendo ao longo do tempo. É algo de uma beleza extraordinária, mas que acontece muito por aqui…. Sentindo-me olhado de tal maneira, o Zezé que vive trancado dentro de mim, espreita pela janela dos meus olhos e responde com o mesmo brilho que me é a mim oferecido.

Aqui sinto que o Zezé tem saído muitas vezes para vir espreitar por esta janela dos meus olhos… Quando olho para as crianças que brincam na rua, quando me cruzo com pessoas que me confiam a sua vida, nos jovens e adolescentes do meu grupo de catequese, nas pessoas que se reúnem à porta da paróquia, na vida e oração em comunidade e no final do dia, quando relembrando tudo o que vivi, deixo que os meus olhos se percam na imagem do Cristo Rei, com o Tejo a seus pés.

Na confusão do decorrer dos meus dias e da vida rotineira do bairro vou encontrando descanso e calma no meu coração sempre tão inquieto. Aqui, sinto que não é preciso muitas palavras ou grandes manifestações, pois a beleza e a simplicidade da criação vão lentamente transformando o coração e tudo o que se passa ao redor.

“E os dias andaram sem pressa e sobretudo muito felizes” – O Meu Pé de Laranja Lima

Há coisas de Deus que me ultrapassam por completo e por muito que queira não as consigo compreender ou encontrar explicação para elas … e talvez esteja tudo bem com isso. O meu tempo e vida em missão é certamente uma delas. Nunca fez parte dos meus planos ou ambições estar em missão no Monte da Caparica, mas já cá estou cá há mais de um mês, que parece ser muito mais, pois é aqui que sinto pertencer e onde tenho sido feliz.

 

João Silva
Caparica-Pragal, 2022-2023