As surpresas de Deus

E a partilha é uma festa, mas também aqui qualquer motivo é bom para festejar e para se juntarem, o que é comum a qualquer povo. O que vejo diferente é mesmo cuidado e a atenção.

Em janeiro, deste ano, dispus-me às surpresas de Deus e isso revelou-se uma enorme graça que tenho recebido todos estes meses. Saber acolher a vontade do Senhor é aceitar e acolher o que me for pedido, fazê-lo com alegria e acreditar que é por um bem maior. Não vou mentir e dizer que essa alegria estava presente quando me disseram que viria para uma missão em Portugal, não era o meu sonho. Mas era e é o sonho Dele, o Seu propósito para mim por este ano.

Uma grande amiga minha emprestou-me um livro que me tem, também, ajudado a entender que missão é esta, e diz assim num capítulo “a Igreja do século XXI está certamente mais periférica e desafiar-nos-á a descobrir que as periferias não são um vazio do religioso, mas são novos endereços de Deus. Mas isso implica uma conversão do nosso coração e do nosso olhar. Não é uma questão secundária interrogarmo-nos de que lugar olhamos o mundo: fazemo-lo a partir do centro ou da periferia? [1]”. O autor escreve a “Igreja” com “i” maiúsculo exactamente para dizer que somos nós, cristãos, que precisamos de nos abrir aos outros que estão longe do “nosso centro”.

Esta é a surpresa de Deus: enviar-me a estar na periferia para me centrar em Cristo. Converter o meu olhar e o meu coração para entender Jesus na sua humildade e serviço. Olhar para o que acontece mesmo ao meu lado e perceber que no meio de uma família destruturada, de afectos desordenados, de sonhos trocados, há um cuidado para com o outro maior do que eu poderia imaginar.

Sinto, desde que cheguei ao Monte da Caparica, que o cuidado com o vizinho é mais importante que preocupações de aparência e conforto. Principalmente que a comida não falte aquele que vive na casa do lado, na rua da frente ou no bairro de cima. E a partilha é uma festa, mas também aqui qualquer motivo é bom para festejar e para se juntarem, o que é comum a qualquer povo. O que vejo diferente é mesmo cuidado e a atenção.

Conheci a Tchuka nas barracas [2] e percebi que há muito trabalho de cultivo e criação de animais para o sustento da sua família. Estivemos à conversa duas vezes, no aniversário da Fonga (que foi um churrasco nas ditas barracas) e numa peregrinação da Paróquia ao Santuário do Cristo Rei, e percebi que no coração da Tchuka cabe muita gente e o trabalho não é problema. Tudo o que faz, faz com amor. Passados poucos dias depois da peregrinação, recebo uma chamada no meu telemóvel – era a Tchuka! Disse-me logo assim que atendi: “Já liguei desde cedo e não me atendeste. Agora já tomei banho, não vou sair à rua. Tens de vir à minha casa. Tenho uma coisa para ti.” A casa dela não é muito longe e fui com a Rosa, também ela voluntária dos Leigos para o Desenvolvimento, porque não sabíamos o que iríamos encontrar. Quando chegámos, sentámo-nos no sofá para conversar um bocadinho e tínhamos um balde (sim, era mesmo um balde) com cachupa e mais duas caixas com canja de galinha, batata-doce, chocolate e caramelos. Por mais que insistíssemos para vir à nossa casa, a Tchuka diz que só quer dar e dá com amor.

É este cuidado que me encheu o coração. Sem a preocupação em receber em troca o que quer que seja, dá-se até o pouco que se tem.

Se eu pensava que vinha oferecer de mim, tenho estado a receber muito mais.

Margarida Patrocínio
Caparica-Pragal, 2019-2020

[1] Elogio da Sede (2018), José Tolentino Mendonça.
[2] Terrenos de cultivo explorados por moradores do bairro.