Aqui mesmo, em casa.

Vivemos de maneira simples junto de quem possui poucos bens materiais. Mas podemos dizer que vivemos com muito, se pensarmos que nada nos falta para satisfazer a fome, a sede, a segurança.

Mudei de morada há dois meses. Mudei de país e de continente. E sem me dar conta, “leve leve”(como se diz aqui em São Tomé), acho que vou acabar por mudar de vida.

Passei a adormecer com o som do mar, a espraiar-se na areia – aqui mesmo atrás de casa – e a acordar com as vozes dos vizinhos e passantes, logo aos primeiros raios de Sol: ora vozes de crianças, ora vozes fortes – dos homens que vão para o campo e que me trazem à memória o som dos despertares da minha infância, quando dormia em casa da (bis)avó Custódia e saía do sono com os mesmos sons.

E há dias em que desperto com a emissão da Rádio Nacional, que o Trajano e a Laú (os vizinhos da frente) gostam de acompanhar. Nesses dias ouço repetidamente um coro de crianças, que cantam alegres: “– Olááá! Bom diaaa!”. São assim as crianças que cantam na rádio e também as que mergulham e brincam, durante todo o dia, debaixo da ponte onde o mar e o rio Nguembela  se abraçam – aqui mesmo, ao lado de casa.

Estou a aprender a viver ao ritmo da luz do sol e da chuva que cai (geralmente) dia-sim, dia-sim, e que as mulheres tão bem conhecem e aproveitam. Fico às vezes na varanda a vê-las caminhar para o rio, com os filhos à cintura ou pela mão, e na cabeça a bacia de roupa ou de loiça, que lavam e deixam depois a secar, num puzzle não intencional, que em determinados dias parece pensado para adornar as margens.

Tudo isto é emoldurado a verde, de vários tons. E azul do céu e do mar. E sorrisos rasgados. E olhos curiosos, cheios de vida. E mãos que facilmente se estendem para cumprimentar.

Mas também há mãos que pedem. E olhos tristes. Há pés descalços no chão esburacado, que gritam “Boleia! Boleia!”, mesmo que o nosso carro passe em sentido contrário ao da caminhada.

E há mangas que se colhem da árvore e comem logo ali. Há peixe fresco que podemos comprar directamente a quem o pescou. Há pão e legumes a poucos metros da porta, em lojas improvisadas em janelas e varandas. E se os preços são diferentes para a comunidade e para quem está de visita, não há comerciante que não nos recorde que “os Leigos para o Desenvolvimento são da comunidade”.

Vivemos de maneira simples junto de quem possui poucos bens materiais. Mas podemos dizer que vivemos com muito, se pensarmos que nada nos falta para satisfazer a fome, a sede, a segurança.

De facto nunca vivi com tão pouco como aqui. Mas não sinto que precise de mais. Sinto-me em casa.

Helena Rosa
S. Tomé e Príncipe, 2019-2020