“Aí estará o teu coração”*

Um destes dias vou explicar-lhe que "Delfino" não é apenas o nome que herdou do avô. Pode ser que assim também ele se lembre da amiga branca, um dia mais tarde, quando sair com o bote e avistar golfinhos neste mar.

Todos temos “pessoas especiais” e o D. é um miúdo por quem eu tenho um carinho particular, mas ainda não sabia.

Soube-o, quando o reencontrei vindo da cidade, onde passou o Natal com a família, e o meu coração saltou de alegria com aquele sorriso que já não via há uma semana.

O D. é um miúdo que, apesar de continuar a ir à escola, prepara diariamente as redes de pesca da família, saindo muitas vezes ao fim da tarde, com o avô e o tio, para pescar peixe-voador.

Em parte acho que foi com esse sentido de responsabilidade que ele me cativou. E também com a presença discreta, desde a tarde em que, ainda sem me conhecer e sem que eu lhe pedisse, abdicou dos poucos minutos de brincadeira com os colegas para me mostrar as tartarugas na praia, me explicou como podia segui-las com o olhar, e os truques para que viessem um pouco mais perto de nós.

O D. é calado, mas não tanto que isso o impeça de chamar o meu nome, quando vem do mato rodeado de miúdos que eu não conheço. E como posso não ficar derretida quando ouço “Helena!” e encontro, entre as caras desconhecidas, aquela cara de sorriso rasgado e olhos tímidos a brilhar?

Mesmo estando ainda a estudar, o futuro chama por ele nestas águas salgadas, e sabemos já que – um dia – o D. vai ser um homem do mar. Um dia vai ser ele a liderar um dos botes de pesca desta praia.

Nessa altura eu já não vou estar em São Tomé para ver… mas algumas vezes hei-de lembrar-me dele às 16h30 – a hora a que os pescadores começam a sair para apanhar peixe-voador.

Um destes dias vou explicar-lhe que “Delfino” não é apenas o nome que herdou do avô. Pode ser que assim também ele se lembre da amiga branca, um dia mais tarde, quando sair com o bote e avistar golfinhos neste mar.

Ele não sabe, mas ontem fez-me rezar quando se cruzou comigo na rua, e quando ao longo do dia me lembrei da alegria que senti.

Rezei com Mateus, que escrevia que “onde estiver o teu tesouro, aí estará o teu coração”*. E eu (que até tenho medo do mar) sei que agora tenho um tesouro na praia de Porto Alegre.

Helena Rosa
S. Tomé e Príncipe, 2019-2020

*(Mt 6, 21-b)