Virtudes para viver na tempestade

Encontro inédito sobre proteção das crianças termina com compromisso firme de erradicar drama dos abusos sexuais, com verdade e transparência. Mas tempos difíceis ainda estão para vir.

Encontro inédito sobre proteção das crianças termina com compromisso firme de erradicar drama dos abusos sexuais, com verdade e transparência. Mas tempos difíceis ainda estão para vir.

“Esta tempestade não vai passar.” Foi desta forma que Veronica Openibo, uma religiosa nigeriana, alertou os participantes no encontro sobre a proteção dos menores, que terminou hoje em Roma, para os tempos exigentes que aí vem e que terão de ser marcados por um caminho de verdade e transparência.

As indicações dadas pelo Papa Francisco no final desta cimeira inédita são claras e marcam nitidamente um ponto de viragem na vida da Igreja. Mas não acalmam toda a tempestade nem resolvem automaticamente o problema pois, se nalguns países o escândalo dos abusos sexuais parece já ter abalado e transformado as estruturas da Igreja, noutros países ainda agora se começou a levantar o véu de um problema que parece demasiado enraizado na sociedade em geral e na malha eclesial, em particular.

Estamos todos convocados para um longo e doloroso caminho de conversão que faça com que uma nova cultura de Igreja possa moldar um novo modo de agir. Um agir que revele de um modo mais evidente a imagem de Jesus. A Igreja não existe para proteger a dignidade de honras e títulos eclesiásticos, nem tão pouco para conservar a sua imagem institucional. Existe para servir os mais pequenos e vulneráveis. Toda a autoridade, cada vocação, cada forma de estar em Igreja tem que estar orientada para este fim prescrito pelo Evangelho. O que, neste tema concreto, significa dar toda a prioridade à proteção dos menores e pessoas vulneráveis e à reabilitação das vítimas.

Indicações do Papa Francisco são claras e marcam nitidamente um ponto de viragem na vida da Igreja. Mas não acalmam toda a tempestade nem resolvem automaticamente o problema pois, se nalguns países o escândalo dos abusos sexuais parece já ter varrido as estruturas da Igreja, noutros países ainda agora se começou a levantar o véu.

Sabemos que muitas pessoas feridas pelo drama dos abusos emergem do silêncio e falam pela primeira vez, quando outras histórias começam a ser conhecidas. Nesse sentido, é necessário reconhecer que os próximos tempos não vão ser fáceis. Vamos, muito provavelmente, continuar a ser confrontados com o nosso pecado, com crimes cometidos por alguns de nós, com situações em que o encobrimento, a autossuficiência e a autopreservação valeram mais do que a defesa das vítimas e o amor à verdade. A vontade já manifestada por D. Manuel Clemente, (presidente da conferência episcopal portuguesa e representante de Portugal neste encontro) de que tudo seja feito para assegurar a transparência nestes processos é significativa. Este é um tempo exigente, mas é também aquele em que somos chamados a viver a nossa fidelidade a Jesus e, consequentemente, aos que mais sofreram e sofrem por causa dos abusos cometidos por padres e religiosos.

Como nos podemos preparar para viver este tempo? Que atitudes de fundo nos podem ajudar?

  • Contrição – A única atitude possível para dar continuidade a este processo de conversão lançado pelo Papa é o reconhecimento das nossas falhas, dos pecados e crimes cometidos. Como diz Francisco nas orientações deixadas no final do encontro, a Igreja deve aprender a acusar-se a si própria e a não “cair na armadilha de acusar os outros, que é um passo rumo ao álibi que nos separa da realidade.”
  • Ter consciência de que a Igreja não é a vítima: é essencial evitar a todo o custo uma abordagem defensiva, ou deixar-se levar por complexos de perseguição. No voo para Portugal, aquando da sua visita apostólica em 2010, disse Bento XVI: “Hoje vemos de um modo realmente terrificante que a maior perseguição da Igreja não vem de inimigos externos, mas nasce do pecado na Igreja.” Por alguma razão, o Papa Francisco agradeceu aos jornalistas que têm investigado e relatado os casos de abusos. O jornalismo tem dado um contributo importante para a descoberta da verdade e o papel mediador dos meios de comunicação social faz com que a Igreja não tenha que ter receio de prestar contas, de modo transparente, à sociedade através dos meios de comunicação. Isto não significa diminuir a exigência para com os jornalistas, mas ter para com eles uma atitude de colaboração.
  • Humildade. Reconhecer que não conhecemos toda a realidade, manifestando, por isso, toda a disponibilidade para que a verdade possa ser revelada. Isso significa encontrar formas que permitam às vítimas contar as suas histórias em ambientes de acolhimento e segurança; colaborar ativamente com as autoridades judiciais denunciando crimes e prestando auxílio a todas as investigações que venham a ser feitas; criar mecanismos que dêem consistência às investigações feitas pela própria Igreja.
  • Implicar-se: todos os cristãos podem e devem ter um papel ativo neste caminho, ajudando a criar ambientes de maior cuidado e proteção, sinalizando situações de risco e exigindo aos responsáveis das suas comunidades uma atitude coerente com o Evangelho e as orientações da Igreja. Implicar-se significa contribuir ativamente para que se desenvolvam mecanismos de prevenção. As crianças e famílias podem aprender, de formas pedagogicamente adequadas, a viver saudavelmente as suas relações com os adultos e a saber defender-se de abordagens que possam ferir a sua dignidade.
  • Não abandonar os abusadores. Mesmo depois de cumpridas todas as penas, a Igreja continua a ter a responsabilidade de acompanhar os abusadores. Um membro da Igreja que tenha cometido um abuso deve ser assistido num processo de regeneração que exige a criação de mecanismos internos de controlo a fim de desenvolver competências que previnam a reincidência. Mas há também que velar para que, em nenhum caso, alguém que tenha abusado possa voltar estar em situações de risco que sejam propensas a essa mesma reincidência. A literatura nesta matéria diz que a recaída é alta e este facto não pode ser ignorado.
  • Paciência: O caminho que nos espera é longo, as transformações necessárias são profundas. Não vão acontecer de um dia para o outro. A forma de as tornar duradouras é ir à raiz da vida espiritual. Daí a necessidade de apostar na formação humana, afetiva e espiritual de todos os que optam pela vida religiosa e sacerdotal. E a necessidade de um melhor acompanhamento de religiosos e sacerdotes, de prevenir a solidão e sobrecarga, de procurar momentos de renovação espiritual e de descanso. Em cada comunidade cristã deve também ser alimentada a profundidade na relação com Deus. Só assim cada cristão encontrará força para atravessar a tempestade.

A Igreja pode aproveitar esta ocasião para colaborar com a sociedade na erradicação e prevenção de todas as formas de abuso. Pode também aproveitar este momento para se purificar de toda a tentação que a transforma mais numa estrutura de poder do que em colaboradora da missão de Jesus, que se colocou sempre ao serviço dos mais frágeis.

Provavelmente, viveremos momentos de tempestade, mas este é o nosso tempo e é agora que temos que assumir as nossas responsabilidades.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.