Ser rebelde é guardar o domingo

Heschel lembra que no Shabbat o ser humano abstém-se de refazer ou alterar a realidade espacial. Reafirmando a sua capacidade de não viver escravo daquilo que possui, constrói um palácio no tempo, um verdadeiro santuário no tempo.

Heschel lembra que no Shabbat o ser humano abstém-se de refazer ou alterar a realidade espacial. Reafirmando a sua capacidade de não viver escravo daquilo que possui, constrói um palácio no tempo, um verdadeiro santuário no tempo.

Com a série “Unorthodox” da Netflix a fazer sucesso (e bem), o Shabbat judaico pode ajudar-nos a redescobrir a liberdade que vem com a obediência ao mandamento de guardar o domingo.

No verão de 2010, com três filhas e grávida do quarto, vivi em Brooklyn. Talvez também por isso, sentia alguma afinidade com as famílias judaicas ortodoxas sempre com um bando de filhos atrás.

Todas as regras me fascinavam. Não se poder andar de carro ou de elevador, ou sequer acender luzes ou velas, que têm de ser acesas antes de começar o Shabbat, não se poder utilizar qualquer aparelho elétrico ou eletrónico, e por aí fora. As poucas vezes que tinha ouvido alguém de fora falar de todas estas restrições tinha sido para as ridicularizar. Sim, era de facto estranho, mas eu dava por mim a achar bastante piada a tudo aquilo.

Percebi que as regras do Shabbat permitem que verdadeiramente todos descansem. A comida é preparada antes, a louça lavada depois, mas nunca durante o Shabbat. Não se poder usar carros implica que só se pode ir a sítios onde se consegue chegar a pé, o que significa  estar com aqueles com quem se vive em proximidade, em casa, no prédio, na rua ou no bairro. Por outro lado, principalmente hoje que a internet nos telefones nos permite fugir de onde estamos sem sairmos do lugar, a proibição da sua utilização obriga-nos a olharmos uns para os outros, a falar uns com os outros, a encontrar formas de estarmos juntos.

E precisamos de estar juntos e olhar verdadeiramente uns para os outros para construirmos relações profundamente humanas, para reconhecer a dignidade do outro e assim lhe permitirmos ser aquilo que verdadeiramente já é. Só este tecer de laços permite uma vida com sentido.

Abraham Joshua Heschel, um dos mais importantes teólogos e filósofos judeus do séc. XX, escreveu aquele que é considerado um dos grandes clássicos sobre o Shabbat, “The Sabbath” (1951). Nele, lembra que o descanso (menuha) que traduz o Shabbat não é meramente um conceito negativo equivalente à ausência de trabalho e de esforço, mas “algo real e intrinsecamente positivo”. “Esta deve ter sido a posição dos antigos rabis se estes acreditavam que foi necessário um especial ato de criação para (…) trazer [o Shabbat] à existência, de modo que o universo ficaria incompleto sem ele.” “Menuha é o mesmo que felicidade e quietude, que paz e harmonia.”

Pararmos fisicamente num determinado sítio delimitado e abstermo-nos de fazer e de criar permite-nos rebelar-nos contra a ditadura do espaço como determinante do que é relevante na nossa vida.

Heschel lembra que no Shabbat o ser humano abstém-se de refazer ou alterar a realidade espacial. Em vez disso, reafirmando a sua capacidade de não viver escravo daquilo que possui, constrói um palácio no tempo, um verdadeiro santuário no tempo. Para Heschel, o judaísmo é uma religião preocupada com a santificação do tempo e o Shabbat a grande catedral do judaísmo. Citando o Rabbi Shimeon, Heschel lembra que “a eternidade não é conquistada por aqueles que trocam tempo por espaço, mas por aqueles que sabem preencher o tempo com espírito”.

Pararmos fisicamente num determinado sítio delimitado e abstermo-nos de fazer e de criar permite-nos rebelar-nos contra a ditadura do espaço como determinante do que é relevante na nossa vida. Se calhar, não precisamos de ir a lado nenhum, nem de fazer nada de especial. Precisamos de voltar a nossa face para Deus e para os que estão perto de nós. Se calhar, ultrapassar o assustador que isso às vezes pode ser. Se calhar, para lá do medo está a verdadeira vida.

Mas e nós que não somos judeus? João Paulo II dedicou ao tema da santificação do domingo a carta apostólica “Dies Domini” e o catecismo da Igreja Católica declara que “o sabbat (…) é um dia de protesto contra as servidões do trabalho e o culto do dinheiro” e que “a instituição do Dia do Senhor contribui para que todos gozem de tempo de descanso e lazer suficiente, que lhes permita cultivar a vida de família e a vida cultural, social e religiosa”, e ainda que “o Domingo é um tempo de reflexão, de silêncio, de cultura e de meditação, actividades espirituais que favorecem o crescimento da vida interior e cristã”.

E se pararmos uns minutos em silêncio, se fecharmos os olhos, e se nos perguntarmos (ou se perguntarmos a Deus) o que fazer dos nossos domingos? E se escrevermos as duas ou três respostas que o silêncio nos trouxer e se as pusermos em prática?

E se olharmos para os nossos domingos como um horizonte de possibilidades e fôssemos tranquila mas deliberadamente experimentando e notando aquilo de nos faz sentir mais vivos, mais humanos, mais próximos dos outros, e se fôssemos criando rituais e hábitos que possam ser as fundações invisíveis mas indispensáveis a uma vida com sentido? E se a verdadeira liberdade (e a felicidade) implicar esta limitação implícita em hábitos e rituais?

“The Sabbath World”, de Judith Shulevitz, acabado de publicar quando o descobri providencialmente nesse verão em Brooklyn, termina dizendo que “temos de nos lembrar de parar porque temos de parar para nos lembrar”. Nos lembrar de quê? Da razão pela qual valeu a pena criar coisas nos outros seis dias. Só se pararmos para nos lembrarmos é que damos significado ao que criámos. Ou que percebemos que perdemos tempo com aquilo que não vale a pena.

Do outro lado do mundo e mais de meio século antes, Josef Pieper, escreveu, em 1948, em “Leisure – The Basis of Culture”, numa Alemanha em plena reconstrução, que “o lazer implica (…) uma atitude de não atividade, de calma interior, de silêncio; significa não estar “ocupado”, mas deixar as coisas acontecerem”. É este silêncio que é “o pré-requisito da apreensão da realidade”. Estar em silêncio para perceber a realidade das coisas, a realidade de nós próprios e também do outro.

Pieper lembra que já S. Tomás de Aquino dizia que “os feitos sublimes da bondade moral caracterizam-se por serem destituídos de esforço – porque é da sua essência provirem do amor.”

Vamos parar de glorificar o trabalho pelo trabalho e a exaustão como sinal de uma vida moral: Pieper lembra que já S. Tomás de Aquino dizia que “os feitos sublimes da bondade moral caracterizam-se por serem destituídos de esforço – porque é da sua essência provirem do amor.”

Vamos fazer dos domingos dias de festa, com boa comida e bom vinho, música, natureza, telemóveis arrumados num canto, livros verdadeiros de papel que se partilham naturalmente porque se podem ver e não estão anonimamente escondidos num minúsculo ecrã, filhos proibidos de estudar e fazer trabalhos de casa, jogos de tabuleiro, sestas sem culpa, filmes partilhados e conversas, silêncio e oração, e assim, quem sabe, redescobrir a nossa humanidade.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.