O jornalista da SIC, Joaquim Franco, comenta os resultados da categoria Ponto de Luz da nossa iniciativa “As marcas que 2019 deixou”.
A escolha maioritária destes dois temas – cimeira sobre abusos sexuais na Igreja (34%) e José Tolentino Mendonça entre os novos cardeais do Papa (33%) –, como pontos “de luz” em 2019, é tão natural quanto óbvia. Outros podiam ser elencados. Na escolha dos “pontos” a votos, faltará um para preencher um tríptico dos acontecimentos “luminosos” do ano: a declaração sobre a Fraternidade Humana, em prol da paz mundial e da convivência comum, rubricado em fevereiro pelo papa Francisco e pelo imã da mesquita de Al-Azhar, Ahmad Al-Tayyeb, em Abu Dabhi. Os dois líderes religiosos prometeram levar este documento “às autoridades, aos líderes influentes, aos homens de religião do mundo inteiro, às organizações regionais e internacionais competentes, às organizações da sociedade civil, às instituições religiosas e aos líderes do pensamento”, e garantiram o empenho “na divulgação dos princípios desta declaração em todos os níveis regionais e internacionais, solicitando que se traduzam em políticas, decisões, textos legislativos, programas de estudo e materiais de comunicação”.
Se os avanços pós-cimeira sobre abusos sexuais na Igreja são apontados como “luz ao fundo do túnel” e a escolha de José Tolentino Mendonça para o colégio cardinalício é vista como mais um contributo para ampliar as probabilidades de continuação da dinâmica reformista de Bergoglio, o compromisso de Abu Dabhi alcança um teor simbólico maior no diálogo entre culturas, reconfirmando e recentrando o papel político das religiões na construção de uma ética de diálogo e interdependência, alicerce sem o qual não é possível compreender sequer os pressupostos da paz. Na mensagem para o 53º Dia Mundial da Paz, o Papa apela à “conversão ecológica”, à valorização da memória e ao respeito como ferramentas para contrariar a desconfiança e o medo que aumentam a “fragilidade das relações e o risco de violência”. A “fraternidade real”, realça, baseia-se na convicção de uma “origem comum de Deus vivida no diálogo e na confiança mútua”.
Em contexto eclesial, os três temas ligam-se entre si e completam-se. A procura de sintonias entre religiões não é mais uma oppção, é uma condição. Os desafios globais e digitais ampliam as “relações líquidas” (Zigmunt Bauman, Amor Líquido, 2008, Relógio d’Água) e redesenham interpretações da própria existência.
As possibilidades de encontro entre diferenças religiosas, presumindo um respeito mútuo para vislumbrar a ética comum, assumem-se como prioritárias e inevitáveis, mas só (sobre)vivem no pressuposto da justiça, da prática política sobre a vida concreta, da coerência, da abertura a novas ou renovadas leituras da realidade. O desafio tem dois campos: o pensamento e a ação consciência/discernimento e inclusão/misericórdia (Quantos dias são 5 anos?, Ponto SJ, 13.3.2018).
As possibilidades de encontro entre diferenças religiosas, presumindo um respeito mútuo para vislumbrar a ética comum, assumem-se como prioritárias e inevitáveis, mas só (sobre)vivem no pressuposto da justiça, da prática política sobre a vida concreta, da coerência, da abertura a novas ou renovadas leituras da realidade.
Ao reforçar a firmeza na condenação dos abusos sexuais, impondo o afastamento dos prevaricadores e a colaboração com a justiça civil, o papa Francisco sela uma doutrina de transparência que pode contagiar outras dimensões da vida eclesial. Sobram ainda bolsas de uma Igreja auto-referencial, mas, com o evangelho como critério, a (des)igualdade e a sustentabilidade como azimute, a revolução é imparável (Papa Francisco – A Revolução Imparável, 2017, Manuscrito).
É neste contexto que deve também (re)ler-se a “criação” dos 13 novos cardeais em outubro. Tolentino Mendonça, protagonista dos diálogos difíceis, fazedor e defensor de pontes (im)possíveis, recebeu o barrete no mesmo consistório que elevou ao cardinalato Miguel Guixot (presidente do Pontifício Conselho para o Diálogo Interreligioso), Alvaro Imeri (bispo da Guatemala), Matteo Zuppi (arcebispo de Bolonha ligado à Comunidade de Sto Egídio), ou os jesuitas Michael Czerny, (Secção de Migrantes do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral) e Jean-Claude Höllerich (arcebispo de Luxemburgo), ambos com um percurso invulgar no terreno da justiça social e do diálogo cultural.
É legítimo os portugueses esperarem algo mais? Com 54 anos, Tolentino tem pela frente quase três décadas até atingir ao limite de idade para os cardeais eleitores. Os primeiros 19 anos deste século já conheceram três papas e o futuro discernido na Igreja abrirá outros caminhos ao jovem cardeal português, bibliotecário e arquivista do Vaticano, “que vê «fogo» nas palavras e nas bibliotecas um «projeto de resistência» à barbárie” (De «pobre padre» a cardeal, SIC Notícias Online, 2.9.2019).
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* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.