Quantos dias são cinco anos?

O essencial que «comanda» o Papa argentino, dos discursos às cartas e exortações, implica não perder o foco. E o foco é o evangelho, que em Bergoglio pressupõe dois caminhos: misericórdia/inclusão e discernimento/consciência.

O essencial que «comanda» o Papa argentino, dos discursos às cartas e exortações, implica não perder o foco. E o foco é o evangelho, que em Bergoglio pressupõe dois caminhos: misericórdia/inclusão e discernimento/consciência.

A pergunta não é um convide a fazer contas. Portanto, não siga já a regra de Hesíodo para somar trabalhos e dias, meses e obras. Embora seja inevitável, não é o tempo cronológico que define Francisco. O tempo que orienta este Papa é da oportunidade.

Assim, quantos dias são cinco anos? Quantas conversas? Quantos olhares? Quantos gestos? Porque afeto, proximidade e humor são uma linguagem com Bergoglio. E não há compêndios que destes falem o suficiente para se perceber o alcance de cada toque de sensibilidade e de cada silêncio de escuta.

As audiências semanais e as visitas papais correspondem a um homem que, desde a primeira hora do pontificado, disse não ser capaz de viver sozinho, que precisa de se rodear de gente numa história incontável. Se quisermos resumir o que foram estes cinco anos de pontificado teremos de assumir, como ponto prévio, que não podemos verdadeiramente dizê-los.

Em 2017, o autor deste texto ensaiou com António Marujo, outro camarada de ofício, uma leitura deste pontificado. O resultado foi um livro[1] com 338 páginas, 453 notas e outras centenas de fontes e referências bibliográficas. Ter mais notas do que páginas é também sintoma da incapacidade de dizer o que está sujeito à interpretação. O papa Francisco é testemunha e exemplo de como o ponto de vista condiciona a leitura. Para uns, cinco anos foi muito tempo sem «avanços» consideráveis. Para outros, foram cinco anos de exorbitância. E há quem entenda que não faz mais, porque não pode.

Nessa publicação ousamos falar numa Revolução Imparável, porque assim entendemos o percurso de Francisco. Não uma revolução no sentido político ou militar do termo, mas precisamente no contexto kairológico de um processo. Há mudanças, acertos, reconsiderações e atualizações na Igreja e, pela Igreja, também no mundo, que têm este Papa como rosto e protagonista. Esses dinamismos estão numa marcha imparável. Não necessariamente irreversível, porque só o tempo cronológico o é, mas numa imparável expectativa. Parar estes dinamismos levaria a uma rutura.

Francisco assumiu como desafio as dores da gasta e pesada estrutura administrativa e simbólica da Igreja católica. E não o fez apenas por teimosia pessoal, feitio ou defeito. As reuniões preparatórias do Conclave que o elegeu apontaram esse caminho. Ele segue um «programa». Provavelmente, alguns dos cardeais que dizem agora que Francisco está ir longe demais, não tinham a consciência do que significaria este desafio no tempo e no espaço que é o do hoje. É preciso retomar 2013, a situação de crise aguda em que se encontrava a Igreja, a frustração e a espera desenhada entre os católicos, para entender este pontificado.

O cenário político internacional nos anos seguintes também veio reconfirmar a pertinência de Bergoglio na cadeira de Pedro. O Papa argentino, formado entre jesuítas, caminhante nas villas miseria, é voz e pulsar alternativo num mundo em mudança, com medos e assimetrias, construtor de desigualdades, impulsos virtuais e complexados. A assertividade nas palavras, associada à simplicidade desconcertante das opiniões, na pressa das viagens ou no improviso de uma audiência, elevam Francisco à concretização de uma espera, em Igreja e no mundo, um «messias mediático» como antevia em 1999 o sociólogo Ignacio Ramonet.

Há o risco de os cristãos ficaram pela «rama» sem perceberem a profundidade. Revisitemos Fátima, onde realinhou e recentrou a devoção. Ou, como disse frei Bento Domingues, “virou tudo do avesso”. Terão crentes e devotos percebido o que disse Francisco na Cova da Iria?

O essencial que «comanda» o Papa argentino, dos discursos às cartas e exortações, implica não perder o foco. E o foco é o evangelho, que em Bergoglio pressupõe dois caminhos: misericórdia/inclusão e discernimento/consciência.

Se há revolução no caminho de Francisco é precisamente porque retoma e reafirma o primado da consciência, o desafio maior de qualquer estrutura de pensamento religioso. Vejamos a exortação Amoris Laetitia, na qual o Papa fala 33 vezes de «consciência», recorre 28 vezes ao termo «discernimento» e conjuga seis vezes o verbo «discernir».

Nunca um documento papal sobre a família tinha valorizado tanto o papel da consciência. Há um caminho individual a fazer por via do discernimento para a formação da consciência, com o apoio e empenho das comunidades, a começar pelos padres.

No nº 303 desta exortação, o Papa apela a que a consciência das pessoas seja “melhor incorporada na práxis da Igreja em algumas situações que não realizam objetivamente” a conceção de matrimónio católico. Em derradeira instância, é a pessoa, em consciência, num processo de acompanhamento e discernimento – que não deve ser confundido com uma tutela –, que reentra na vida sacramental. Isto implica, como se percebe, uma grande responsabilidade dos pastores para a integração e convivência nas comunidades de fiéis, que têm de ser prioritariamente promotoras de um discernimento ativo, como forma de estar na fé e de viver uma misericórdia libertadora.

Mais do que descentralizar processos administrativos, Francisco procura uma Igreja corresponsável e aberta à misericórdia, desclericalizada. Um desconforto para clero e leigos habituados ao sofá das leis e à rotina das normas, numa atitude que contagia crentes e comunidades. É uma dinâmica revolucionária, para uma mudança que começa na atitude. Não se estranhem assim adversários e adversidades do Papa na Igreja.

Neste sentido, ganham fôlego as insatisfações de Francisco. A teologia está ao serviço da Igreja e das pessoas, não o contrário. Ao serviço da vida real e concreta, com criatividade pastoral e disponibilidade para o acolhimento, rejeitando a preguiça. Sem beliscar o edifício doutrinário católico, Francisco propõe um reposicionamento: a doutrina deixa de estar a montante, condicionando, mas a jusante, como proposta que não exclui. A montante está o evangelho interpretado e a interpretar, suporte das periferias, itinerário de justiça, de combate à pobreza e à exclusão.

Não fiquemos apenas pelos sapatos do Papa ou pela cruz peitoral. Jorge Mario Bergoglio é um pensador em ato, um «escutador» do mundo, um pároco numa aldeia global, que vê na família a chave da mudança e no exercício da política a possibilidade de uma redenção. “Esta economia mata”, é talvez a expressão que mais vai colar-se à memória futura do papa Francisco, que tendo garantido que nunca foi “de direita”, também nunca afirmou ser “de esquerda”, embora admita ter sido influenciado por pensadores “de esquerda” na sua formação enquanto cidadão.

Em cinco anos, reforçando palavras que lhe eram conhecidas enquanto arcebispo de Buenos Aires, Francisco falou com frequência da necessidade de reabilitar a política, libertando-a dos mercados endeusados do liberalismo económico e financeiro. Fazer política é uma responsabilidade cristã, diz, um gesto de amor, porque há um amor cívico e político: “o amor, cheio de pequenos gestos de cuidado mútuo, é também civil e político, manifestando-se em todas as ações que procuram construir um mundo melhor”, como “amor à sociedade” e “compromisso pelo bem comum”[2].

Neste contexto, não será difícil vislumbrar os «inimigos» políticos do Papa argentino, que veem na encíclica Laudato Si, com as questões ambientais como pano de fundo, uma espécie de declaração de guerra. Se somos também à medida do que fazemos com os outros, entende o Papa que nos dizemos também na forma como tratamos a Casa Comum, numa ecologia integral.

Vindo da experiência da vida cosmopolita na América do Sul, o papa Bergoglio reforça a dimensão operativa da misericórdia. A misericórdia não se diz, concretiza o evangelho. É, assim, um Papa do sul a falar para o Norte, na defesa do direito «sagrado» ao trabalho e da cidadania. Uma cidadania que não exclui a dimensão religiosa, a necessidade de as religiões, confissões cristãs e qualquer “pessoa de bem” se associarem, pela diversidade, numa causa comum. Na senda de outros papas,  Francisco sublinha o diálogo inter-religioso e ecuménico com momentos pragmaticamente inovadores. Juntou em Roma os beligerantes da Terra Santa – de pouco valeu, mas reforçou o único papel diplomático do qual as lideranças religiosas não devem abdicar. Num mundo com uma “guerra aos pedaços”, como repete, insistiu em não relacionar Islão com terrorismo: “Não nos cansamos de repetir que o nome de Deus nunca pode justificar a violência, só a paz é santa, não a violência”[3]. Em Istambul rezou na Mesquita Azul, e sem quaisquer problemas em admiti-lo. No Mianmar registou uma sintonia entre Buda e Francisco de Assis. Em Cuba teve um encontro histórico com Cirilo, o patriarca ortodoxo de Moscovo. Nos 500 anos do início da reforma protestante, foi à Suécia abrir as comemorações e elogiou Lutero dizendo que lhe reconhecia razões para contrariar a Igreja do seu tempo.

Rezar uns pelos outros e fazer coisas junto, eis a proposta. O resto é apenas forma: “pensemos no poliedro, é uma unidade, mas com todas as partes diversas”[4]. Ecoa a essencialidade desta atitude de Francisco: “As religiões não podem dormir tranquilas enquanto houver uma criança com fome e sem educação”[5].

Reformar não é um capítulo que se abre e fecha, assim, sem mais. Em Igreja, não tem descanso, nem fim absoluto. Dos serviços de administração central à validação da mulher na estrutura de decisão, há outra revolução em curso. Este é afinal o Papa que denunciou as doenças da cúria, os vícios episcopais e as castas cardinalícias. Devem ser mediadores e não gestores, muito menos da consciência das pessoas.

Foi difícil vestir a pele de Papa, confessou em 2015 na mesma entrevista a uma televisão mexicana onde afirmou ter “a sensação” de estar a viver um pontificado “breve”. Nos próximos meses, teremos por isso de refazer a pergunta: Quantos dias são cinco anos? E como medir o tempo de Bergoglio?

Sem prejuízo de outros temas que podem precipitar momentos mais agudos, no curto ou médio prazo há cinco previsíveis variáveis a ter em conta no pontificado: a (re)composição do Colégio de Cardeais, do qual sairá o sucessor, o Sínodo dedicado à juventude, as negociações diplomáticas com a China e a Rússia, a resistência física aos desafios e opositores, e uma eventual visita à Argentina, que tem vindo a ser sucessivamente adiada.

Como pano de fundo temos o elogio a Bento XVI, que, nas palavras de Francisco, “abriu uma porta”[6] ao resignar. Bergoglio já traçou um limite. Aguenta bem a dor moral, mas é “intolerante e cobarde quanto à dor física”[7].

Ao liderar a consciência do mundo no caso dos refugiados, arriscando dar um murro no estômago de uma Europa que, nalguns países, vai dando sinais contrários aos de Francisco, a (im)previsibilidade do pontificado reforça uma convicção. A de que a Igreja é chamada a um «sim» exemplar. Não pode nem deve ser um museu de medos, segregações, tradições, conceitos ou referências vagamente históricas na memória curta dos nossos dias, mas uma porta aberta para uma experiência concreta, de um Deus com gente para que outra gente, sem «abrigo», se sinta “mais gente e ninguém deixe de ser pessoa”[8]. Esta não é tarefa de um Papa. No contexto da Igreja, é de todos, na instituição, individualmente e em família.

Na exortação Amoris Laetitia, Francisco cita Mario Benedetti: “As tuas mãos são a minha carícia, o meu despertar diário, amo-te porque tuas mãos trabalham pela justiça. Se te amo, é porque és o meu amor, o meu cúmplice e tudo, e na rua, lado a lado, somos muito mais que dois”.

Entre a utopia e a missão, assim se contam também estes cincos anos de um homem com formação clássica e experiência cosmopolita. Um jesuíta que adopta o nome de Francisco para vestir de dominicano, que exercita o discernimento mas recusa a tradição imobilista e não tem medo de se enganar. “Chutem para diante”[9]…

[1] Papa Francisco – A Revolução Imparável, 2017, Manuscrito
[2] Laudato Si, nº 231
[3] Setembro 2016, Assis
[4] Julho 2014, Caserta
[5] Julho 2013, Rio de Janeiro
[6] Entrevista ao La Voz del Pueblo, Maio, 2015
[7] Idem
[8] Expressão muito usada por frei Fernando Ventura, franciscano para quem “somos pobres, mas somos muitos”
[9] Julho 2013, discurso aos jovens no Rio de Janeiro

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.