Creio que é comum o sentimento de orgulho da nossa nação quando temos oportunidade de fazer alguma experiência no estrangeiro, mesmo que essa experiência seja fascinante. Por mais enriquecido que eu me sinta pelas oportunidades de viver no estrangeiro que foram surgindo no meu percurso, nunca deixei de sentir o são-orgulho de ser português. E não tenho o menor pudor em o afirmar! Posso até ter vergonha de alguns factos mas nunca de ser português e não admitiria que me fizessem sentir vergonha do nosso “jardim à beira mar plantado”.
Porquê falar do orgulho ou da vergonha de ser desta ou daquela nacionalidade?
Na Síria parece haver um sentimento geral de vergonha. Consigo até perceber, pelo tanto que lhes foi tirado, pelas humilhações sofridas quase diariamente, pela dignidade arrasada, pelo passado destruído, pelo futuro aniquilado e por um presente quase sem sentido. Talvez não seja vergonha, mas sim um sentimento de pena, uma pena partilhada por cada um e nessa partilha cada um vai encontrando suporte e forças para chegar ao amanhã, na esperança de reencontrar o sentido que lhes foi roubado. Mas a vergonha de ser sírio é real e vem de fora! Quando o mundo – independentemente das razões – isola o país, fecha as portas e ostraciza tudo que vem daqui, há um sentimento de vergonha, de estar só. E eu não acredito que haja tal coisa como “orgulhosamente sós”. Isto é verdade para a nação, mas também para cada um que teve o “azar” de nascer sírio.
Tive o privilégio – poderia dizer o orgulho – de acompanhar um jovem sírio numa longa jornada até chegar a Portugal, onde seguirá os estudos no ensino superior. Uma jornada que foi possível graças a tanta generosidade e dedicação. Sabíamos que teríamos muitos e difíceis obstáculos a ultrapassar. Preparámo-nos e fomos ultrapassando barreiras, vivendo como vitórias. Numa das derradeiras fronteiras – já na Europa (Chipre) – ele foi detido, não obstante ter tudo em ordem. A razão da detenção: ter um passaporte sírio. Depois de longas horas de espera, isolado numa sala fechada apenas com uma cadeira, sem perceber o que se estava a passar e o porquê de estar detido, foi sujeito a outras longas horas de interrogatório. Interrogavam-no com a certeza de que haveria alguma coisa que não estaria certa, mas a verdade é estava tudo em ordem; tinhamo-nos preparado! E parecia que estavam no direito de desconfiar, de o humilhar e de o envergonhar!
O silêncio que ocupou o nosso recobro daquela experiência foi interrompido por um pedido de desculpa, como se ele tivesse que carregar a culpa; a culpa e a vergonha de ser sírio.
Eu estava lá, não com ele, mas numa sala ao lado de portas abertas e com um confortável sofá. Ele, resignado à sua sorte, juntou esse momento a tantas outras humilhações sofridas nos últimos anos. Eu, indignei-me, discuti, movi-me, falei com este e com aquele. E sofri com ele; parecia que eu sofria mais do que ele. Poder-se-ia pensar que sim, porque foi uma ferida numa pele até então incólume… mas quanto não doerá uma ferida num corpo com cicatrizes, e algumas tão recentes? É uma dor mais profunda que toca o âmago do ser.
Na corrente de solidariedade que também faz parte da sua jornada, a embaixada portuguesa resgatou-o, a ele e a mim com ele! O silêncio que ocupou o nosso recobro daquela experiência foi interrompido por um pedido de desculpa, como se ele tivesse que carregar a culpa; a culpa e a vergonha de ser sírio. Pensei no poder que temos de fazer com que o outro se sinta culpado e envergonhado por ser duma nacionalidade, duma cor de pele, duma religião, dum status e ou simplesmente por ser diferente. Se temos o poder de fazer sentir vergonha temos também o poder – e diria a obrigação – de fazer sentir orgulho por ser quem é. Haverá alguma razão válida para o exercício de um poder em detrimento do outro?
No meu coração, que agora também é sírio, não posso deixar de dizer aos meus compatriotas sírios que nunca deixem de sentir orgulho, não obstante tudo. Digo-o com um profundo orgulho de ser português! Também não consigo deixar de pensar naqueles que, ao contrário deste jovem, ultrapassam sozinhos fronteiras que os podem levar a outros futuros. Quanta culpa e quanta vergonham não carregam ao chegar – ou talvez nem sequer cheguem!
Ele chegou! Chegou a Portugal sem complicações na fronteira. Afinal estava tudo em ordem! À sua espera estavam braços abertos que o abraçaram e o farão seguramente sentir orgulho em ser sírio.
Fotografia: © Ouwais Sadek
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.