Oito anos de pontificado em nove viagens e uma “visita” ao Espaço

A 19 de Março de 2013, o Papa Francisco iniciava o seu pontificado. Aqui fica um apanhado das suas prioridades e ações apostólicas analisadas à luz das suas viagens que já percorreram cerca de 30 países.

A 19 de Março de 2013, o Papa Francisco iniciava o seu pontificado. Aqui fica um apanhado das suas prioridades e ações apostólicas analisadas à luz das suas viagens que já percorreram cerca de 30 países.

Viajar é uma missão para o Papa Francisco. Cada viagem assume um significado particular na sua estratégia de tornar a Igreja cada vez mais atenta aos sinais do mundo e actuante nos desafios da barbárie pós-moderna à fé e à mundividência religiosa. O diálogo ecuménico, o encontro com representantes das outras religiões abraâmicas, a relação da humanidade com o planeta têm sido as preocupações de um pontificado com oito anos.

“Não gosto de viajar”, disse o Papa argentino em Junho de 2019. Para quem não gosta de viajar, já visitou mais de 30 países desde a sua entronização, cuja data se assinala neste 19 de Março.

Papa “callejero” (caminhante), cada viagem de Francisco é um exemplo de tudo aquilo que considera fundamental para os cristãos e para o mundo. Seja a denúncia do “ódio e do extremismo” que efectuou na primeira visita de um papa à península arábica (aos Emiratos Árabes Unidos, em 2018), seja a crítica do “mal nuclear” e suas sequelas feita na viagem ao Japão em 2019, quando visitou Hiroxima e Nagasáqui.

Nestas duas viagens estão patentes algumas das preocupações centrais de Francisco: primeiro ponto, o diálogo inter-religioso, marcado pelo encontro com o grande imã da Universidade Al-Azhar, o egípcio Ahmad al-Tayyeb (principal autoridade do Islão sunita), de que resultou o documento “pela fraternidade humana”, assinado por ambos, e de que há relevante eco na encíclica Fratelli Tutti. Para Francisco, uma diferente fé não impede o diálogo, a tolerância e a defesa da dignidade humana na perspectiva de que a religião é um vector essencial a qualquer comunidade.

Segundo ponto, a atenção do Papa jesuíta ao planeta e às pequenas comunidades católicas, onde a fé se vive com uma dimensão que, por vezes, parece ausente dos espaços tradicionais de afirmação cristã e de um Ocidente sujeito a uma feroz ofensiva laicizante. O que importa é o exemplo, não a quantidade – di-lo-á de diversas formas, do Japão à Birmânia ou a Marrocos.

Convivência e diálogo

Se o Japão é exemplo de periferia da Igreja (e local escolhido para a missionação por São Francisco Xavier, um dos primeiros Jesuítas), outro exemplo desta realidade é o Azerbeijão, que Francisco visitou em outubro de 2016. País muçulmano, de maioria xiita, com uma pequena comunidade católica na ordem de poucos milhares, o Azerbeijão permite destacar o relevo das “periferias” numéricas na Igreja e a convivência não conflituosa entre cristãos e o Islão xiita. Uma convivência que se repete no Iraque, onde xiitas e cristãos foram alvo da violência do Estado Islâmico, e que o Papa visitou no início de Março do corrente ano. Uma comunidade antiga está hoje reduzida a escassas centenas de milhares de crentes que, contudo, não desistem da sua fé e da sua presença no território onde nasceu Abraão.

Francisco teve oportunidade de visitar Ur, o local bíblico do nascimento de Abraão, forma de sublinhar a profunda raiz comum das três grandes religiões monoteístas (cristianismo, judaísmo e islamismo). Da deslocação ao Iraque fica ainda a imagem de outro momento alto do encontro entre religiões, protagonizado pela visita do Papa a um dos expoentes do Islão xiita, o ayatollah Ali al-Sistani. Sinal de que este entende como possível e desejável a coexistência de diferentes comunidades religiosas numa mesma sociedade.

Se a procura do diálogo e o “estender da mão” aos dirigentes religiosos muçulmanos têm conhecido momentos simbólicos, os gestos de diálogo ecuménico não são menos significativos e traduzem alguns sucessos no que se pode designar como diplomacia confessional. Como se assistiu em Fevereiro de 2016, em Cuba, quando Francisco se encontrou com o patriarca da Igreja Ortodoxa russa, Cirilo.

As relações entre ortodoxos russos e Roma não têm sido fáceis, ao contrário do que sucede com as outras igrejas ortodoxas. Para o Papa jesuíta, os ortodoxos russos são elemento indispensável no diálogo ecuménico e é importante dissipar tensões surgidas após a desagregação da União Soviética devido a um movimento de proselitismo católico na Rússia e na Ucrânia, além de questões teológicas. Para se compreender o alcance do encontro, desde o Concílio de Florença (1439) que não havia contactos entre altos representantes das duas igrejas.

Já com o patriarca ecuménico de Constantinopla, Bartolomeu I, Francisco manteve oito encontros, o primeiro dos quais logo em 2013 na missa de entronização em Roma. Em Maio de 2014, durante uma visita do Papa à Jordânia, Palestina e Israel, ambos os dirigentes religiosos deram sinais de estar em desenvolvimento um trajecto de aproximação mútua. Um caminho pontuado por sucessivos encontros e pela assinatura de várias declarações comuns.

“Alimento espiritual”

A preocupação de Francisco não é apenas da relação da Igreja para fora de si mesma, é igualmente com a relação da Igreja consigo própria. E com o que esperar no futuro. Em Roma, Francisco segue um modelo delineado nos seus tempos de Buenos Aires, assente nas “periferias existenciais” e nas “villas miseria” como exemplo. Como disse, em Julho de 2015, na viagem à Bolívia, Equador e Paraguai, atenção especial deve ser dada, incondicionalmente, “aos irmãos mais frágeis e às maiorias mais vulneráveis”.

Para Francisco, o caminho apontado pela Conferência Episcopal da América Latina (CELAM), de 2007, é o modelo a seguir, o modelo de uma Igreja próxima das pessoas comuns, dos mais pobres, de uma religiosidade popular genuína na sua fé, capaz de ser e viver “o encontro com Jesus Cristo”, dirá em Marrocos, durante a viagem realizada em 2019. Viagem essa em que o Papa dedicará particular atenção ao fenómeno das migrações, afirmando que àqueles que procuram uma alternativa à pobreza nos países de origem é devida a “dignidade” e que se deve proceder à “aceitação dos migrantes”, acolhendo-os devidamente e promovendo a sua integração.

Especial atenção é concedida por Francisco exactamente a uma das regiões do planeta de onde é proveniente boa parte dos migrantes: a África subsariana. Região em que, paralelamente com a América do Sul, mais cresce o número de católicos e, também, mais rapidamente aumenta a população.

O crescimento da população em África e a sua identificação com o cristianismo é uma fonte de “alimento espiritual” para a Igreja, disse Francisco na sua quarta visita ao continente, em 2019. Durante a deslocação a Madagáscar, Maurícias e Moçambique, o Papa pôs especial ênfase na situação das populações mais carenciadas e na sua relação com a Igreja, que opera, muitas vezes, como a única instituição capaz de oferecer segurança e apoio aos desprotegidos. Ao mesmo tempo que representa a única referência estável em sociedades que vivem situações de conflito recorrente ou de desagregação social.

Um só planeta

É também em África que se fazem sentir alguns dos efeitos mais devastadores das alterações climáticas, aquilo que Francisco define como uma “crise ecológica”, uma situação de “devastação espiritual e material” em que os “ambientes sociais como os ambientes naturais necessitam de protecção”.

Para chamar a atenção para este problema, em outubro de 2017, o Papa “visitou” via satélite os seis astronautas a bordo da Estação Espacial Internacional. Foi um astronauta americano, Randy Bresnik, a evocar a “indescritível beleza da Terra” que, vista do alto, parece impoluta e pacífica. Como se “o amor fosse a força que movimenta o universo”, declarou, por seu turno, Francisco num momento de diálogo com um outro astronauta, o russo Alexandre Missourkine. Uma realidade ideal cujos limites o Papa bem conhece, e que se tem esforçado por contrariar nos seus oito anos de pontificado.

 

Nota: o autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.