O nosso quotidiano num país em guerra

No terceiro domingo do Advento, partilhamos o testemunho de um jesuíta ucraniano que tem estado, desde o início da guerra, a apoiar os militares e que gere agora uma casa no centro do país que acolhe famílias que fogem do conflito.

No terceiro domingo do Advento, partilhamos o testemunho de um jesuíta ucraniano que tem estado, desde o início da guerra, a apoiar os militares e que gere agora uma casa no centro do país que acolhe famílias que fogem do conflito.

“Eu quero pedir-te, da forma mais clara que conseguir, para suportares com paciência tudo o que está por resolver no teu coração e também para tentares amar cada uma dessas questões, tal como se fossem quartos por habitar ou livros escritos numa língua estrangeira. Não procures respostas que ainda não te possam ser dadas: estás a vivê-las agora. Tudo deve ser vivido. Vive as questões agora, talvez posteriormente, um dia, sem reparar, vais viver a resposta.”

Rainer Maria Rilke, Worpswede, 16 de julho 1903

 Letters to a Young Poet

 

No curso da nossa existência, podem ocorrer eventos inesperados em que podemos perder a vida. Normalmente não pensamos neles até sermos diretamente confrontados com estes episódios. Nesses momentos, uma única pessoa que nos demonstre misericórdia e amor pode transformar esta situação em algo mais tolerável. O cuidado e amor que nos são demonstrados podem prevenir que vivamos a solidão, dor ou tragédia sozinhos e isolados. Para além disso, acontecimentos externos (como guerra ou conflitos, por exemplo) podem colocar-nos em situações muito próximas da morte. Então, para muitos de nós, a perspetiva da morte torna-se mais apaziguadora do que assustadora, especialmente quando perdemos ou fomos separados pela morte daqueles que amamos. O facto de podermos morrer e estar mais perto dos nossos entes queridos pode trazer-nos paz. A ideia de os reencontrar novamente traz-nos consolo. Consolo que cheira a algo querido, próximo a casa, no qual podemos mostrar a nossa humanidade.

Nas nossas casas, aprendemos a tornarmo-nos pessoas e a dar significado a sentimentos, como cuidado e o amor, através de diferentes experiências de vida. Em cada casa, podemos encontrar regras e, ao mesmo tempo, direitos que definem os limites e os contornos das nossas relações. Por isso, é difícil explicar porque a nossa humanidade está deformada e porque as pessoas estão dispostas a matar e a exterminar-se umas às outras. O evangelista S. João diz-nos que Deus é amor, embora seja difícil vê-lo em momentos como este em que a única coisa tangível é a destruição. O amor é o que há de mais sagrado numa pessoa e no mundo. O seu conceito pode, no entanto, ser questionado e posto em risco quando se lhe retira a esperança e a possibilidade de viver. Para uma pessoa de fé, quando o amor desaparece, Deus também desaparece. Por isso, enquanto seres humanos, e ucranianos, uma das nossas missões é apoiar e encontrar em cada pessoa, sem exceção, uma luz de esperança, de Páscoa e de paz. É desafiante; sem dúvida, não pode haver qualquer desejo de o continuar a procurar quando a raiva nos domina. Pode ser ainda mais complexo no nosso contexto, em que um país vizinho quer decapitar o amor, a força e a liberdade. No entanto, enquanto a vida existir, não devemos desistir nem simplesmente deixá-la como está. A vida tem de continuar.

A humanidade tem de encontrar um refúgio; mesmo quando os alicerces da nossa casa colapsam, quando não sentimos o sabor e a alegria da vida, e quando não podemos experimentar a nossa liberdade. Porque aqueles que ajudaram a descobri-la desapareceram, é-nos difícil integrarmo-nos porque não estamos em casa, mesmo quando sorrimos. A casa apenas será casa quando voltar a ser acolhedora, aceitável e previsível em relação ao que vai acontecer amanhã.

O amor é o que há de mais sagrado numa pessoa e no mundo. O seu conceito pode, no entanto, ser questionado e posto em risco quando se lhe retira a esperança e a possibilidade de viver. Para uma pessoa de fé, quando o amor desaparece, Deus também desaparece. Por isso, enquanto seres humanos, e ucranianos, uma das nossas missões é apoiar e encontrar em cada pessoa, sem exceção, uma luz de esperança, de Páscoa e de paz.

Mesmo quando temos de procurar uma nova identidade, não podemos desistir nem deixar de procurar uma base de apoio. Quando a vida é destruída, não temos outro direito senão o de viver. Temos de viver e ter um ponto de apoio. Neste novo contexto, nunca devemos parar de procurar algo que revele uma nova pessoa em nós, com uma nova identidade. Aproveitar o momento para salvar a nossa casa, as nossas relações e a nossa humanidade. É importante não nos perdermos e encontrarmos a força para sermos surpreendidos e encontrarmos, a cada dia, algo que nos cative. Permitirmo-nos observar e experimentar novamente sentimentos como a felicidade, a alegria e o amor. Não devemos ter medo de abrir a porta a uma nova realidade, de sermos habitantes de um mundo belo e de querermos testemunhar a presença da humanidade. Para que, num mundo de guerra, a oportunidade de escolher o bem não desapareça. Devemos continuar a construir pontes e relações porque precisamos uns dos outros para continuarmos a ser um só. Mantendo o foco no que nos une e não no que nos divide, não devemos ter medo de nos tornarmos donos da nossa liberdade, que se expressa na ação; donos da nossa vida, mesmo quando os alicerces da nossa casa são destruídos; e encontrar em nós próprios a capacidade de iluminar as estrelas e de ser “Fogo que ateia outros fogos”.

Não devemos esquecer que o nosso foco é o coração humano, pois não é aquilo que, de fora, entra no homem que o pode tornar impuro… Mas o que sai do homem, é que o torna impuro… Do interior do homem que saem más intenções, roubos, assassínios, fraudes, inveja, orgulho, insensatez (Mc 7, 18-22). A forma como nos observamos a nós próprios reflete a nossa vida. A capacidade de agir reflete o coração de cada um, vela com todo o cuidado sobre o teu coração, porque dele jorram as fontes da vida (Prov 4, 23). Quando não se pode silenciar a injustiça, a humanidade tem de ser anunciada e defendida.

 

 

NOTA: O P. Vitaliy coordena a casa de retiros que serve de alojamento aos refugiados que vivem em Khmelnytskyi (região central da Ucrânia), por períodos curtos e longas. Isto inclui também a preparação das instalações e a recolha do equipamento e dos fundos necessários para prestar apoio psicológico, espiritual e médico às famílias, bem como assistência na adaptação a um novo contexto. Para muitas destas pessoas, este é o primeiro sítio onde se podem sentir seguras. Preparam-se agora para um inverno que se prevê que seja muito difícil. Nas últimas semanas, relata-nos, as sirenes de alerta têm sido constantes, bem como os ataques de drones e mísseis. Para conhecer melhor o trabalho do P. Vitaliy veja o vídeo aqui.

No início deste ano, o P. Vitaliy esteve em Portugal e deu uma entrevista ao Ponto SJ que pode ser lida aqui.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.