O grito da dependência

Ao contrário do que vamos ouvindo na atual cultura das contínuas odes à autonomia e empoderamento, apetece dar o grito da dependência!

Ao contrário do que vamos ouvindo na atual cultura das contínuas odes à autonomia e empoderamento, apetece dar o grito da dependência!

Às vezes é preciso sermos lembrados de que as nossas próprias forças não são suficientes. Mais: pode ser até mesmo urgente e necessário baixar os braços. Não em sinal de desistência, mas de entrega e confiança. Ao contrário do que vamos ouvindo na atual cultura das contínuas odes à autonomia e empoderamento, apetece dar o grito da dependência! Deus sugere-nos (só sugestão como Lhe é característico) que nos deixemos levar seguros nos Seus braços, e diz-nos, baixo e sem gritar, que é Ele que opera em nós, o Seu espírito e graça, com a Sua maneira própria que estamos longe de perceber ou prever. Isto se deixarmos, claro.

Há músicas que nos ajudam a tomar consciência disso, e nesta seleção – no mínimo eclética, todas têm esse poder em mim.

 

1. Coldplay, We Are King, Jacob Collier

As harmonias aqui presentes, nesta união entre Coldplay, Jacob Collier e We Are King, sugerem uma certa fragilidade e pequenez de que nunca é demais sermos lembrados. Esta consciência, mesmo que nos seja por vezes difícil de aceitar, faz-nos mais felizes. “Only got a human heart”… E não me é pedido que tenha outro.

 

2.    Simplesmente Ser – Carminho

As músicas a vozes impressionam-me sempre por isto: cada uma, com uma segurança invejável, segue o seu caminho, sem se atropelar, sem se enganar na rota… resultando numa inesperada mas bonita harmonia. A Carminho e a Rita Vian convidam a voltar ao essencial: e penso que o segredo está no advérbio de modo.

 

3.    Let Go – PJ Morton, The Walls Group

“He said: you don’t have to cry ‘cause I’ll suplly all your needs”

Imagino que seja equivalente a quando Jesus diz aos discípulos: “quanto mais o vosso Pai que está nos céus, dará coisas boas aos que lhe pedirem!” (Lc, 7, 11)
Deixar Deus e a Sua graça agir em nós, admitir que Ele sabe o que é melhor para nós, tem muito que se lhe diga, por isso a mim ajuda-me tantas repetições do refrão.

 

4. Aunque Es De Noche – Rosalía

“La corriente que nace de esta fuente, bién sé que es tan capaz y ominpotente. Aunque es de noche”

Na voz da Rosalía tudo é inquietante e, para mim, fascinante, por nos fazer sentir a música, e por realçar mais o emocional que o racional, pela forma como canta. Neste poema de S. João da Cruz tudo desinstala: um quase grito arrepiante de sotaque espanhol que, aliado às palavras de S. João da Cruz, levam mais longe: mesmo sendo noite (diria até, sobretudo nas nossas “noites”) é Ele que nos ampara.

 

5. Below Sea Level – Ben Harper

“I fear that everthing is happening in this world (…) as if it were up to me!”

Com tudo o que está a acontecer no mundo, baixar os braços parece inconcebível… mas se for para nos abandonarmos noutros braços, que nos conduzem e guiam, pode ser o que nos é pedido. Quase como uma segunda voz que praticamente não reparamos, mas está lá para assegurar.

 

6. Everything We Need – Kanye West, Ty Dolla $ign & Ant Clemons

“You gon’ do what Adam do? Or say, baby, let’s put this back on the tree ‘cause we have everything we need”

E a rasgar esta seleção, do álbum Jesus is King, Kanye West a repetir que já temos tudo o que precisamos. A maçã que nos é oferecida (e de tantas formas e feitios, a toda a hora) é a de que com as nossas ação, empenho e inteligência, somos capazes de tudo a que nos propomos. Não somos. E o desafio é o de oferecer todas as nossas forças, sabendo que uma força Maior nos é assegurada a priori, e que essa força até é motor de arranque para pôr novamente a maçã na árvore.

 

7.  Já Soube um Dia a Maneira – Zé Maria

“Peço-Te de mãos vazias que venhas Tu ter comigo”

Mãos vazias. Para poder acolher as muitas graças invisíveis que nos são dadas, e assim poder encontrá-Lo! Com este poema de Zé Maria no Fado Pagem apetece ajoelhar e “apenas” fazer destas palavras as nossas. E “ouvir” também os silêncios e a guitarra que confirmam o que canta o fadista.

 

8. I Shall Not Walk Alone – Ben Harper

Esta música vem de um dos muitos álbuns incríveis do Ben Harper. O que mais me comove é a coerência da voz sincera, com as palavras de certeza e esperança no colo de Nossa Senhora. É daquelas músicas que até sabe melhor ouvir quando estamos exaustos.

 

9. Chama Por Mim – Miguel Araújo

Não sou conhecedora de toda a sua discografia, mas esta música do Miguel Araújo parece-me que se distingue das outras. Gosto do duplo sentido da palavra chama e gosto do que fica depois de ouvirmos: uma vontade, quase uma pressa em corresponder (seja de que formas for, e seja a quem for que nos sintamos chamados).

 

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* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.