Rumores e boatos são fenómenos tão antigos como a linguagem: desde as primeiras sociedades da civilização humana que as nossas praças fervilham com a procura da verdade e a propagação de falsidades. O surgimento das redes sociais fez da praça pública uma realidade omnipresente, onde se disseminam fake news e se geram movimentos de solidariedade, em que a nossa janela para o mundo é formatada por algoritmos que nos retroalimentam os nossos gostos e des-gostos.
Inopinadamente, silenciamos as vozes dissonantes, aplanamos a complexidade do mundo e perdemos vista da realidade, autocondenando-nos a um estado de “ignorância organizada”: temos a sensação de que o nosso sistema de crenças é constantemente confirmado pelo que acontece, apesar de muito ser o que fica por ler, saber e conhecer. Os nossos “murais”, na sua melhor versão, são pequenos paraísos privados, que florescem à sombra das muralhas que os protegem, feitos de pequenas verdades e fechados sobre si mesmos, num interminável loop do “eu”.
Para que o rosto da realidade não se enlameie, o atual momento exige-nos métodos para aprender a escutar, critérios que nos permitam examinar e o desenvolver de um estilo que nos permita conversar. É a estas necessidades que pretendemos responder com este manual de sobrevivência.
Capítulo 1 – O método de Santo Inácio para escutar o outro
No número 22 dos Exercícios Espirituais, Santo Inácio apresenta o Pressuposto como ponto de partida para a relação entre quem “dá” o retiro e quem o “recebe”.
Para que quem dá os exercícios espirituais como quem os recebe, mais se ajudem e aproveitem, se há de pressupor (1) que todo o bom cristão deve estar mais pronto para salvar a proposição do próximo que para condená-la; (2) e se não a pode salvar, inquira como a entende, (3) e se a entende mal, corrija-o com amor; e se não basta, busque todos os meios convenientes para que, entendendo-a bem, se salve.
Santo Inácio dá-nos, em três simples passos, a chave para que os nossos pensamentos, palavras e ações, contribuam para que todos se aproximem de Deus. Fora do contexto de retiro, creio que o texto do Pressuposto nos dá pistas preciosas para promover boas conversas, e até dirimir conflitos, sejam estes reais, potenciais ou possíveis.
Primeiro passo: o nosso ponto de partida deve ser a compaixão, isto é, um “sentir com”, uma identificação com o outro que permita compreender o seu ponto de vista, mesmo que pressintamos uma provável divergência, ou que a forma como se expressa é pouco articulada ou exata.
Segundo passo: se não conseguimos reconhecer bondade ou verdade no que a pessoa nos diz, devemos questioná-la, como quem quer genuinamente compreender, e estando disponíveis para acolher o que tem para nos dizer.
Terceiro passo: se, ainda assim, continuamos a entender que o seu pensamento é erróneo, devemos recorrer a todos os meios possíveis para, com caridade, a corrigir, sem nunca negligenciar o sentido principal da nossa conversação: que ambos cresçamos em sensibilidade à verdade, à bondade e à justiça, dons de Deus para nós.
Capítulo 2 – Aprender a filtrar para degustar
Talvez todos conheçamos a primeira parte do dito “qualquer um tem direito a opinião”, mas poucos entre nós estamos a par da segunda parte dessa frase, elevada a máxima, do político norte-americano Moynihan: “mas ninguém tem direito aos seus próprios factos”. Moldar a consciência, formar opinião, é tarefa trabalhosa, e exige-nos a capacidade de saber digerir ideias e escrutinar a informação que nos é providenciada, isto é, de filtrar o que nos é dado a beber, identificando o que enturvece as águas e devém obstáculo no entendimento.
Sugiro cinco questões que nos ajudam a situar e avaliar uma notícia ou um texto, para desta forma melhor reagir.
- Quem criou a mensagem? –A origem não determina o valor de verdade, mas é indiscutivelmente relevante: devemos estar conscientes da fonte da informação;
- Que técnicas foram utilizadas para atrair a nossa atenção? – Isto é, de que forma estão a tentar persuadir-nos: pelo apelo aos sentimentos? Através da erudição? Pelo recurso a dados ou teorias científicas? Através de rumores injustificados?…
- Como é que outras pessoas podem interpretar de forma diferente da nossa? – Imaginar que outras conclusões se podem inferir.
- Que pontos de vista e valores são incluídos ou omitidos na mensagem? – é uma perspetiva católica? É relativista? Apresenta uma ética deontológica ou teleológica? Está repleto de doutrina marxista, ou liberal, ou niilista?…
- Porque foi esta mensagem enviada? – Que objetivos visa? Que forças pretende despoletar?
Capítulo 3 – O nosso estilo de cada dia
Devemos ter mais amor à verdade que medo a não termos razão. O medo de errar, ou de lavrarmos em equívoco, é uma espécie de cobardia que nos paralisa e nos empareda nas nossas convicções. Diante do diferente, do desafiante e do desconhecido, devemos buscar trilhos pelos quais possamos caminhar e portas pelas quais entrar. Não me refiro à tentação de a todos agradar, mas sim à ousadia de criar disposição e oportunidades para a escuta mútua.
Como estilo, tal concretiza-se em três práticas:
1. Nunca esquecer a caridade: diante de nós temos, não um frio ecrã, mas a voz de um irmão que é, como nós, querido e desejado por Deus, com a sua história de graça e de pecado;
2. Reconhecer a verdadeira pergunta: descobrir qual é a inquietação por detrás das palavras do outro, para que nos possamos libertar das correntes do ruído e dirigir-nos à pessoa e às suas preocupações;
3. Ser claro e substantivo: comunicar com ideias acessíveis e com conteúdo, sem medo de repetir várias vezes a ideia central que pretendemos passar, e evitando resvalar para fora do tema.
É fulcral não esquecer que, mais do que transmissão de informação, uma conversa é o proclamar de uma alegria, e que cada um de nós é, em si mesmo, mensagem
Conclusão – A verdadeira coragem e a pergunta que Deus nos faz
Vivemos um momento de um certo “narcisismo identitário”, em que tudo o que nos irrita, ou que contrarie a visão do mundo dos nossos grupos de pertença, é necessariamente falso. Vivemos numa espécie de preferência pelo hiper-real – uma realidade fabricada e até fantasiosa – como fuga ao deserto e aridez do muitas vezes adverso quotidiano. Qualquer um pode morrer por obstinação, mas quantos terão a coragem de se deixar derrotar por Deus?
A verdadeira coragem está em crescer em sabedoria e justiça, em cultivar a alma, em deixar-nos libertar do nosso próprio amor, querer e interesse. Como diz Paulo, livres da lei do pecado e da morte; libertados para a vida no Espírito (Rom 8, 1-4). Deus não tem outra voz, outras mãos, outros pés que os nossos para levar o Evangelho ao mundo, para reconhecer o Espírito já presente na realidade. E todos os dias, em cada momento do dia, Ele pergunta-nos: posso contar contigo? Cabe a cada um de nós responder, e descobrir como partilha o jugo com aquele que é manso e humilde de coração.
Fotografia de: Daria Nepriakhina – Unsplash
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.