Harry Potter, Jesus e os Profetas

O que terá Harry Potter a ver com a morte e a ressurreição de Jesus? E o que será que Marcião se esqueceu de aprender com o Messias? Não perca mais este "episódio" do Prixm e saboreie ainda as palavras do grande Maurice Blondel.

O que terá Harry Potter a ver com a morte e a ressurreição de Jesus? E o que será que Marcião se esqueceu de aprender com o Messias? Não perca mais este "episódio" do Prixm e saboreie ainda as palavras do grande Maurice Blondel.

1. Como mel para a boca

O tema da morte e ressurreição do Messias atravessa toda a cultura ocidental.

Harry Potter aparece como um exemplo icónico no último livro da série Os talismãs da Morte:
Para derrotar Voldemort, o herói deve aceitar morrer. Só depois da morte ressuscita e se torna capaz de derrotar o Príncipe das Trevas.

Este tema é tão profundamente bíblico que quase mereceria um «esclarecimento» inteiro… talvez para o ano! 🙂


2. Um texto bíblico

Depois de, nas últimas semanas, termos aprofundado o que diz o Evangelho de S. João sobre o sepulcro vazio e sobre o encontro de Maria Madalena com Jesus ressuscitado, hoje propomos a leitura do Evangelho segundo S. Lucas.

Nesse mesmo dia, dois dos discípulos iam a caminho de uma aldeia chamada Emaús, que ficava a cerca de duas léguas de Jerusalém; e conversavam entre si sobre tudo o que acontecera. Enquanto conversavam e discutiam, aproximou-se deles o próprio Jesus e pôs-se com eles a caminho; os seus olhos, porém, estavam impedidos de o reconhecer.
Disse-lhes Ele: «Que palavras são essas que trocais entre vós, enquanto caminhais?» Pararam entristecidos. E um deles, chamado Cléofas, respondeu: «Tu és o único forasteiro em Jerusalém a ignorar o que lá se passou nestes dias!» Perguntou-lhes Ele: «Que foi?» Responderam-lhe: «O que se refere a Jesus de Nazaré, profeta poderoso em obras e palavras diante de Deus e de todo o povo; como os sumos sacerdotes e os nossos chefes o entregaram, para ser condenado à morte e crucificado. Nós esperávamos que fosse Ele o que viria redimir Israel, mas, com tudo isto, já lá vai o terceiro dia desde que se deram estas coisas. É verdade que algumas mulheres do nosso grupo nos deixaram perturbados, porque foram ao sepulcro de madrugada e, não achando o seu corpo, vieram dizer que lhes apareceram uns anjos, que afirmavam que Ele vivia. Então, alguns dos nossos foram ao sepulcro e encontraram tudo como as mulheres tinham dito. Mas, a Ele, não o viram.»
Jesus disse-lhes, então: «Ó homens sem inteligência e lentos de espírito para crer em tudo quanto os profetas anunciaram! Não tinha o Messias de sofrer essas coisas para entrar na sua glória?» E, começando por Moisés e seguindo por todos os Profetas, explicou-lhes, em todas as Escrituras, tudo o que lhe dizia respeito. 
Ao chegarem perto da aldeia para onde iam, fez menção de seguir para diante. Os outros, porém, insistiam com Ele, dizendo: «Fica connosco, pois a noite vai caindo e o dia já está no ocaso.» Entrou para ficar com eles. 

Lc 24, 13-29


3. O esclarecimento

Quando caminha com os seus discípulos, Jesus faz exatamente o mesmo exercício que nós fazemos aqui todos os domingos: interpreta as Escrituras. Nem é preciso dizer que devia, no entanto, ser a um nível bastante diferente do do PRIXM e que teria sido para nós um prazer assistir à mais bela lição de exegese da história!

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Auguste Rousselin (1848-1916), Os peregrinos de Emaús (óleo sobre tela, 1889), Museu das Ursulinas, Mâcon, França.

| Que Escrituras interpreta Jesus? |

Não é certamente o Novo Testamento que Jesus interpreta, uma vez que este texto ainda não estava escrito, já que Jesus acabava de morrer e ressuscitar. O Evangelho indica-nos que Jesus começa por «Moisés e todos os profetas»:

●  «Moisés»: quando se fala da Escritura, o texto refere-se ao que se chamava comummente os Livros de Moisés e a que hoje chamamos Pentateuco: Génesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronómio. São os primeiros livros que encontramos quando abrimos a Bíblia;

●  quanto à expressão «todos os profetas», remete-nos para os livros proféticos (Isaías, Jeremias, Oseias…)

Em suma, quando explica aos discípulos de Emaús todas as referências que Lhe dizem respeito nas Escrituras, Jesus está a interpretar o que os cristãos chamam Antigo Testamento.

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Henri Bles (ca. 1510-1555), Paisagem com encontro no caminho para Emaús (painel de óleo e madeira, século XVI), Musée des Arts anciens du Namurois, Namur, Bélgica.

| Uma curiosidade com sabor a heresia |

Separar o Antigo do Novo Testamento é uma tentação comum para os cristãos. Para simplificar, preferimos o «Jesus cheio de amor» do Novo Testamento ao «Deus muitas vezes severo e violento» do Antigo Testamento. No entanto, é o próprio «Jesus cheio de amor», Deus feito homem, que proclama a unidade fundamental da Revelação. Jesus explica o Antigo Testamento para mostrar que é o Messias Esperado: existe portanto uma continuidade.

Esta tentação de separação é tão antiga quanto a Igreja. É mesmo a primeira grande heresia*. No século II, Marcião declara que o Deus do Antigo Testamento não é o mesmo do Novo Testamento: era preciso, portanto, eliminar o Antigo Testamento e manter apenas o Novo.

*O termo heresia vem da palavra grega hairesis, que significa «escolha, seleção». Uma heresia seleciona, nas Escrituras, apenas o que lhe convém

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Joseph von Führich (1800-1876), Der Gang nach Emmaus (óleo sobre tela, 1837), Kunsthalle Bremen, Alemanha.

| O Novo Testamento alimenta-se do Antigo |

O capítulo 24 do Evangelho segundo S. Lucas – e tantas outras passagens do Evangelho! – deviam ter dissuadido Marcião de cair nessa tentação: Cristo não veio abolir o Antigo Testamento, veio cumprir o que ali se prometia (Mt 5,17).

Os leitores da Escritura (nós!) devem, portanto, ler o Antigo Testamento, trabalhá-lo, para acolher melhor o Novo Testamento, que contém muitas referências e citações das «Escrituras».

É exatamente o que procuramos propor-lhe cada domingo, com o PRIXM. E esperamos que goste!


4. Uma palavra final

Este artigo só pode ser concluído citando as palavras do grande filósofo francês Maurice Blondel (1861-1949):

A verdade é que os testemunhos sobre o túmulo vazio e as aparições tangíveis de Cristo – liberto das leis comuns da materialidade corporal – se revelam uma prova evidente de que, apesar de todas as profecias e predições, aqueles homens simples, pouco instruídos, ainda carnais, aqueles companheiros assíduos e testemunhas da vida pública d’ O Mestre não tinham compreendido absolutamente nada ou tinham esquecido totalmente essas alusões, que os teriam impedido de se espantar ou de se assustar”.
(Maurice Blondel, La philosophie et l’esprit chrétien, tome 2 : Conditions de la symbiose seule normale et salutaire, Paris : PUF, 1946, p. 24-25.)

Foto de destaque: Madalena Meneses

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