Estive doente e foste visitar-me

O princípio base seria este: o de que aceitamos o cuidador/familiar do doente como parte integrante (fundamental e não descartável) de uma equipa de pessoas envolvidas no mesmo objetivo: cuidar e tratar, em todas as dimensões, dos doentes.

O princípio base seria este: o de que aceitamos o cuidador/familiar do doente como parte integrante (fundamental e não descartável) de uma equipa de pessoas envolvidas no mesmo objetivo: cuidar e tratar, em todas as dimensões, dos doentes.

Sempre achei curiosa esta passagem bíblica (Mt 25, 36). De entre um conjunto de apenas sete obras de misericórdia corporais, lá está este apelo à visita da pessoa doente. É interpelante, 2000 anos depois, mesmo para quem não for cristão, como os nossos antepassados valorizavam tanto esta dimensão do (con)viver humano. Depois de séculos e de muitas influências e ideias que foram entrando na História e formando os nossos valores coletivos, penso que perdemos parte desta tradição que tínhamos herdado. E ficámos mais pobres.

Agora que a pandemia se aproxima da endemia e que estamos todos a voltar gradualmente à vida normal, gostava de lembrar e homenagear aqui os tantos que sofreram em solidão e silêncio nos hospitais (e lares). Como médico, assisti diretamente ao sofrimento e angústia que foram causados por esta espécie de trincheira que se abriu nos hospitais, entre doentes e familiares. Por causa do risco pandémico (tantas vezes irrealisticamente insuflado e até tão tarde invocado no decurso destes dois anos), milhares de pessoas ficaram sem visitas, dias ou mesmo semanas a fio, e muitas morreram sozinhas, sem uma visita no seu leito de morte. Argumentava-se então que era um mal necessário (“tem de ser”). Permitir a entrada de alguém-exterior-ao-hospital seria um potencial perigo para os doentes e tínhamos o dever de os proteger. É uma lógica que deixámos que nos distorcesse, porque desmontá-la é difícil.

Por causa do risco pandémico (tantas vezes irrealisticamente insuflado e até tão tarde invocado no decurso destes dois anos), milhares de pessoas ficaram sem visitas, dias ou mesmo semanas a fio, e muitas morreram sozinhas, sem uma visita no seu leito de morte. Argumentava-se então que era um mal necessário (“tem de ser”).

É de facto verdade que, sempre que alguém entra num hospital, aumenta, nem que seja por uma quantidade ínfima, a probabilidade de esse alguém-de-fora transmitir alguma “coisa” a alguém-de-dentro. Mas a verdade é que, quando um doente entra num hospital, espera que o tratem a ele e não meramente a sua doença. Um corpo vivo não é dissociável da pessoa que vive nesse corpo.  Penso que nos esquecemos, como sociedade, disto, durante a pandemia, e precisamos de uma mudança de perspetiva para agirmos de forma mais humana da próxima vez que nos depararmos com algo semelhante.

São muitas as pessoas envolvidas nos cuidados diários de um doente num hospital. Médicos, enfermeiros, auxiliares, pessoal que traz as refeições e até quem faz a limpeza, privam ou entram em contacto com o espaço do doente. Todos eles têm vidas lá fora, contactam com as suas famílias e amigos, e todos eles podem também trazer o vírus. Com a pandemia, decidimos que todas estas pessoas deviam continuar envolvidas nos cuidados aos doentes (apesar do risco) mas as pessoas que lhes eram mais próximas, os seus cuidadores e familiares, não. Foi uma decisão “nossa”, coletiva, e nunca perguntámos nada aos doentes sobre isso. Como se decidiu isto e em nome de quem ou do quê? Com que finalidade?

Gostava de propor uma perspetiva diferente. A de, em contraponto, dizer que o cuidar do doente que está internado inclui também a visita dos familiares. A de dizer que esta tem, em si mesmo, valor terapêutico; a de que é uma parte indissociável do seu tratamento. Porque não? Mais uma vez, trata-se de cuidar da pessoa, não meramente tratar da doença. Afinal são eles ou elas que estão ali diante de nós. Repito: perguntámos-lhes? E se fossemos nós, que preferiríamos?

É claro que todas as situações são passíveis de adaptação e que continuaria a haver situações especiais de exceção temporária. Não ignoramos a realidade à nossa volta. Mas o princípio base seria este: o de que aceitamos o cuidador/familiar do doente como parte integrante (fundamental e não descartável) de uma equipa de pessoas envolvidas no mesmo objetivo comum: o de cuidar e tratar, em todas as suas dimensões, outras pessoas que têm o infortúnio de se encontrar fragilizadas por doença.

Será que conseguimos, coletivamente, recuperar a sacralidade perdida desta tradição de que falava no início? Creio que não abdicar de cuidados humanos e humanizantes de pessoas para pessoas (independentemente das circunstâncias) o implica. E que ficaríamos mais ricos.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.