Escreveu recentemente uma carta aberta aos youtubers onde lhes pedia atenção àquilo que faziam. Isto porque tinham chegado ao seu consultório crianças com crises de ansiedade devido aos vídeos que viam no youtube. O que é que este fenómeno nos diz sobre as crianças e jovens de hoje?
Os youtubers são um fenómeno recente em Portugal mas com uma adesão exponencial, e entre miúdos cada vez mais novos. Muitos dizem de forma clara que quando forem grandes querem ser youtubers. Vejo miúdos de 10 anos que fazem cursos para criar e manter uma conta no youtube.
O que é que isto nos diz dos sonhos e desejos das nossas crianças e jovens?
Os youtubers são um modelo incontornável. São jovens adultos, entre os 20-25 anos, que fazem vídeos com conteúdos diversos: uns são puro entretenimento, brincadeiras, que não trazem grandes consequências para os miúdos, mas outros têm conteúdos assustadores, como a “Maria Sangrenta”, ou abordam temas que depois não são clarificados, levando os miúdos a fantasiar. Escrevi esta carta por perceber que havia miúdos com ansiedades, medos, pesadelos e até dificuldades em adormecer porque pensavam em conteúdos dos vídeos. Depois há os jogos, onde aparece a cara do youtuber a jogar e, se uns são inofensivos, outros, como o “Palhaço assassino”, têm conteúdos assustadores. Os miúdos vêem o seu modelo a expressar medo, a ficar assustado, a gritar, a arregalar os olhos. E, por norma, tendemos a mimetizar e a comportar-nos por observação dos nossos modelos. Os youtubers são modelos porque são simpáticos, geram empatia, e os miúdos identificam-se com eles, querem ser iguais a eles, vestir como eles, ter as mesmas coisas do que eles. Os seus produtos de merchandising, livros ou revistas, esgotam num instante, e as meninas pintam o cabelo e maquilham-se da mesma forma das youtubers.
A minha ideia foi levar os youtubers, que talvez façam isto sem pensar nas consequências, a refletir sobre a importância do seu papel, pois têm centenas de milhares de seguidores. Por exemplo, o Casio atingiu há dias os cincos milhões de seguidores. Os miúdos estão sempre em cima do acontecimento pois usam os telemóveis e tablets dos pais, fazem uma subscrição, e quando há um novo conteúdo são notificados. Muitos pais nem sabem. E se não estão a par de tudo, quando chegam à escola imediatamente passam a estar.
A questão central é que aos pais, educadores e família compete o dever de supervisão dos conteúdos e do tempo gasto nisto. Há miúdos que passam horas agarrados ao youtube. Mas muitos pais estão tranquilos porque os filhos estão sossegadinhos no quarto e não estão na rua… O ISCTE fez um estudo recentemente que mostrou que os pais ainda continuam a achar que os perigos estão na rua, são as drogas, os consumos, as más companhias. Não acham que as redes sociais sejam preocupantes e não supervisionam. Os miúdos, que são inteligentes, sabem fazer mais do que os pais e apagam o histórico depois de usar o tablet. Há pais que põem regras, como não levar os telemóveis para a cama. Mas a verdade é que há miúdos que esperam que os pais adormeçam e levantam-se para ir buscá-los. Outros acordam às seis da manhã ao fim de semana, e quando os pais acordam às 9 horas, já eles têm três horas de tecnologias. Na escola, se não têm telemóvel, vêem no dos amigos. Não há forma de controlamos a 100 por cento esta exposição, por isso o investimento só pode passar pela educação.
Como se consegue?
Tem que se conversar sobre o que vêem, explicar, perder tempo, estar com eles a ver. Por vezes, os miúdos estão com phones e nós nem sabemos o que estão a ouvir. Há situações em que têm mesmo de por filtros nos equipamentos. Há pais muito diferenciados que confiam plenamente que os miúdos já têm maturidade para fazer o seu filtro. Mas não têm. Tem de caber aos pais esse papel. Por outro lado, não se trata de culpabilizar os youtubers mas de ajudá-los a serem mais sensíveis ao que fazem e aos seus impactos.
Como é que eles reagiram à sua interpelação?
Reagiram bem e admitiram que nem sempre pensam nas consequência. Por vezes até alertam no final dos vídeos “atenção, não repitam isso, é uma brincadeira, não façam isso sem a presença de um adulto“. Mas estamos a falar dos últimos dez segundos do vídeo, onde a atenção da criança já se esbateu. A mensagem não passa.
No meio de tudo isto, as crianças ficam aterrorizadas, com medos. Mas porque é que continuam a ir ver, mesmo após as recomendações?
Os youtubers misturam conteúdos assustadores – que levam a medos, ansiedades e problemas do sono – com conteúdos lúdicos. Quando os miúdos começam a ver um vídeo não sabem se será assustador e é muito difícil parar a meio. Os youtubers são comunicadores natos, muito apelativos e expressivos a nível não verbal. Os miúdos também afirmam: “depois chego à escola e não tenho nada para comentar”. Ou seja, sentem-se excluídos face aos pares. Todos viram, comentaram, e eles sentem-se excluídos. E nesta idade é muito importante sentirem-se parte de um grupo. No outro dia um dizia-me: “por um lado quero ver, por outro não quero”. Ficam naquela ambivalência. E se não têm ninguém que os ajude a processar e a pensar as vantagens e desvantagens de ver, como podem lidar com o chegar à escola e os outros gozarem por não terem visto? Então optam por ser iguais aos outros, porque há este fenómeno de identificação.
O espaço de conversa entre pais e filhos é cada vez mais difícil?
Cada vez há menos tempo para isso. As pessoas não podem deixar de trabalhar mas há pequenas coisas que podem fazer a diferença, como não ter o rádio ligado quando se vai buscar as crianças à escola, não jantar com a televisão acesa, aproveitar o banho para interagir com os filhos. Sabemos que os miúdos não reagem muito quando lhes perguntamos como foi o dia. Este tipo de interrogatório é infrutífero, é de uma forma mais descontraída que as coisas vem. Os rituais familiares que facilitem a comunicação e a expressão afetiva são muito importantes. São zonas de conforto, criam previsibilidade na vida das crianças. Não se trata de criar tempo extra – os pais queixam-se muito que esse tempo extra não existe -, mas de aproveitar o tempo que têm.
Mas vemos famílias juntas no restaurante onde miúdos e pais estão agarrados ao telemóvel…
Os pais são os modelos. Se eles estão agarrados, é difícil dizer aos filhos para não estarem. Pior: os pais dão os telemóveis e os tablets aos filhos para eles se calarem. Desde pequeninos que fazem isso.
Qual o impacto disso nas crianças?
Não podemos fazer de conta que não estamos na era das tecnologias e pensar que os nossos miúdos de hoje vão crescer da forma como nós crescemos. Quando eu digo aos meus filhos que tive telemóvel aos 23 anos eles quase que desmaiam. A realidade não vai ser a mesma, é um facto. Mas é preciso um equilíbrio e isso é que muitas vezes não se consegue. Os pais delegam muito na internet: se o filho está a fazer o TPC e tem uma dúvida, respondem: “vê no Google“. É a resposta mais fácil. Os pais têm um papel pedagógico e, em vez de ir ao Google, pode ir ao dicionário ou à enciclopédia. Isso implica motivação e sensibilidade e muitas vezes os pais preferem uma solução mais tipo penso rápido do que uma solução de fundo.
Esse consumo excessivo de tecnologia não traz danos a nível da criatividade e da empatia?
O principal impacto é o imediatismo que os miúdos querem em tudo. É o aqui, o agora, e o já. A tolerância à frustração é baixíssima, não têm capacidade de adiar o presente. Os pais, como se sentem culpados pela falta de tempo para os filhos, tendem a compensá-los de outras formas, muitas vezes desajustadas, como por exemplo o materialismo, e o já, o agora. Os miúdos não têm capacidade de espera. Por definição uma criança ou adolescente é auto-centrado, pensa que o mundo gira à sua volta. Se não houver ninguém que o ajude a descentrar-se, a ver que há realidades para além deles próprios, é difícil. Estamos a criar adultos egocêntricos, centrados apenas nas suas necessidades e pouco empáticos. E isso assusta-me.
O principal impacto é o imediatismo que os miúdos querem em tudo. É o aqui, o agora, e o já. A tolerância à frustração é baixíssima, não têm capacidade de adiar o presente.
Mas vai percebendo que também há sonhos, valores e coisas positivas que movem estas crianças?
Claro. Eu vejo de tudo. Ainda no outro dia um miúdo me dizia: “no Natal não quero presentes pois para mim o mais importante é estar com a família, as pessoas de que eu gosto…” Eu até pensei que não estava a ouvir bem pois só estou habituada a ouvir um consumismo desenfreado.
O que esperam os pais dos filhos?
Bons alunos, excelentes notas. Os miúdos têm agendas assustadoras, cheias de atividades extra curriculares e os pais só esperam que eles sejam os primeiros aqui e ali. É quase uma coisa narcísica para os pais: “o meu filho foi o melhor nisto“. Mas se calhar o filho está triste, não tem amigos, está de rastos, e quase não dorme porque sai do futebol às nove da noite e entra na escola às oito da manhã. Parece que os pais não vêem isso: não há tempo para fazer nada, como se fazer nada fosse uma perda de tempo. Não fazer nada é a coisa mais importante do mundo. Para eles criarem e sonharem alguma coisa têm de ter espaço para isso, e não têm. Depois chegam as férias e os pais só querem ocupar-lhes o tempo ao máximo.
Há pouco falava da espera. Agora da gratuidade. São tudo valores que são difíceis de transmitir hoje?
Sim… Ainda vejo algumas famílias com estas preocupações. Por exemplo, de não ver televisão, de restringir o uso das tecnologias, de privilegiar o contacto com a natureza, de dar metade dos presentes de Natal a uma instituição. Há pais que fazem este esforço… Mas a falta de tempo e a necessidade que os miúdos têm de conversar é enorme. Os pais ficam muito perdidos, por vezes querem ser os melhores amigos dos filhos e os papéis confundem-se. Há pais que me dizem: “quero ser o melhor amigo dela para ela me contar tudo“. Mas ela tem que contar o que entende, porque confia no pai e vê nele um papel parental e não um amigo.
Os pais têm dificuldade em gerir este desejo de proximidade e autonomia?
Sim. E quando entram na pré adolescência, por um lado querem monitorizar – e devem – mas depois há o respeito pela privacidade. Os miúdos reagem mal quando se vai ver o telemóvel ou a conta de instagram. Pais muito controladores levam a que os miúdos criem contas paralelas nas redes sociais. E eles acham que controlam e não controlam nada. Tem de passar pelo diálogo e isso implica tempo, disponibilidade, e os pais perceberem que isso é importante. Muitas vezes, o sucesso académico, profissional e financeiro são a única bitola para medir o sucesso. Os pais vangloriam-se muito do sucesso dos filhos, como se fosse o prolongamento do seu sucesso pessoal. Ou pelo contrário, para que eles possam ser aquilo que eles não puderam ser.
E o contrário também acontece? Os pais sentirem o falhanço dos filhos como falhanço pessoal?
Sim. Perguntam-se: “onde é que eu falhei? O que vão pensar de mim? Qual vai ser a minha representação social se o meu filho não for o melhor?” Há uma metáfora na parentalidade que diz que educar um filho é como lançar um papagaio de papel. Se damos pouca corda e puxamos muito, o papagaio cai. Mas se damos muita corda, o papagaio perde-se. Este equilíbrio, que não é fácil, é entre a autonomia e a segurança, o vínculo. Deixar voar mas perceber que há aqui segurança, um sítio onde podem sempre voltar. Este é um equilíbrio que implica ajustamentos e nem sempre os pais estão disponíveis para isso.
Antigamente, havia uma aldeia a cuidar de uma criança, como diz o provérbio, pois havia uma perspetiva comunitária. Hoje as pessoas estão muito sozinhas. Os pais são um bocado periféricos na vida das crianças, estão tão ocupados que nem têm muita noção das coisas.
Porque é que há tantas falhas nas competências dos pais?
Há variadas razões. Antigamente, havia uma aldeia a cuidar de uma criança, como diz o provérbio, pois havia uma perspetiva comunitária. Hoje as pessoas estão muito sozinhas, nem o vizinho conhecem. Os miúdos muito entregues à escola, ao ATL, e num determinado estatuto económico, às empregadas. Os pais são um bocado periféricos na vida das crianças, estão tão ocupados que nem têm muita noção das coisas. Há miúdos que vivem numa “gaiola dourada”, que saem da casa para o colégio, e vice-versa, enquanto os pais estão entregues às suas vidas profissionais altamente exigentes. É oito ou 80: os pais que não supervisionam e dão a liberdade toda e depois este extremo da gaiola dourada.
Os miúdos das classes mais altas sofrem mais isso?
Diria que sim. Muitos nem têm competências básicas para andar num transporte público. Andam sempre de UBER ou no carro dos pais.
Mas que tipo de jovens são os dos nossos dias?
Correndo o risco de generalizar, diria que não têm tolerância à frustração. Não fazem planos a médio e longo prazo porque estão habituados ao aqui e agora e não sabem o que é trabalhar para uma meta, ter prazos e tarefas para cumprir até lá, algumas que duram tempo. É mais: eu quero isto agora e já. Até nas classes mais baixas: há pais sem posses e filhos com iphone. São atributos de exteriorização que os miúdos valorizam imenso.
A sociedade vive muito de estímulos e parece impossível criar uma personalidade que não seja uma manta de retalhos. Como podemos ajudar as crianças e jovens a encontrarem formas de unificação interior?
Para aceitarem e assumirem que não têm de ser iguais e fazer o que os outros fazem, tem de haver uma auto estima e segurança que a maioria deles não tem. Mesmo nos comportamentos mais desviantes, de consumos, de automutilações, percebemos que é um fenómeno de grupo. “Como estou num grupo onde estão todos a fumar um charro e eu não estou?” “Se três ou quatro se auto-mutilam porque eu não o faço também?” E experimentam e depois pensam: “até soube bem porque a tristeza que eu tinha até desapareceu por uns momentos“…É uma coisa assustadora. Muitos fazem parte de grupos na internet onde partilham os cortes, como se cosem, etc.
Mas isto está sempre associado a um sofrimento muito grande..
Sim, claro. Mas também está relacionado com processos de identificação. Sabemos que os miúdos precisam de se identificar. Mas temos que perceber como podemos contribuir para que o processo de identificação seja em torno de algo positivo, como o desporto, o acreditar em algo.
Até que ponto as tradições religiosas podem ajudar nisto?
Podem facilitar a dois níveis. Primeiro porque têm muitos rituais, de congregação: as pessoas unem-se para celebrar algo em comum. E depois algumas religiões – e tenho miúdos de várias – têm crenças culturais e religiosas que ajudam a lidar com determinadas circunstâncias, nomeadamente a perda, que pode não ser necessariamente a morte, mas uma perda qualquer. O facto de acreditarem em algo facilita a aceitação.
E a espiritualidade como desejo de aperfeiçoamento, de ser melhor, de ter uma ajuda externa, também é importante?
Sim, para jovens e adultos. Vejo pessoas que, em momentos difíceis, seguiram por esse caminho e afirmam que sentiram uma paz interior e adquiriam outra capacidade para olhar as coisas. Sentem-se menos sozinhas, e isso ajuda a lidar com depressões, lutos, ansiedades e divórcios. Quando os filhos saem de casa, (síndrome do ninho vazio) muitas reorientam-se e vão à procura do voluntariado, de sentirem-se bem a fazer o bem. É muito gratificante: fazer o bem pelo bem, a troco de nada, pode ser terapêutico até do ponto de vista da sintomatologia.
Também tem essa experiência com jovens?
Sim. Acompanho miúdos que, por terem problemas de comportamento e pré delinquência e, e numa perspetiva construtiva, foram encaminhados para projetos da comunidade. Ao início têm relutância, dizem que não se identificam e só vão porque são obrigados, mas depois a gratificação que tiram é grande. Recordo um que estava num projeto de sem abrigo e que dizia que não queria estar com aquelas pessoas; depois começou a contar-me histórias, quase com uma lágrima no olho, pois estava a sentir empatia, a saber pôr-se no lugar do outro. Vejo também muitos universitários pró-ativos que, apesar de estarem muito focados na universidade, querem guardar espaço para fazer voluntariado.
Acompanho miúdos que, por terem problemas de comportamento e pré delinquência e, e numa perspetiva construtiva, foram encaminhados para projetos da comunidade. Ao início têm relutância, não se identificam e só vão porque são obrigados, mas depois a gratificação que tiram é grande. Esta perspetiva comunitária tem-se perdido mas tem de ser reconquistada.
É uma forma de contrariar este auto-centramento?
Sim, e reconhecem que isso os ajuda a sentirem-se melhores pessoas. Esta perspetiva comunitária tem-se perdido mas tem de ser reconquistada. O poder da comunidade é muito grande. Os bairros antigamente tinham essa função e o mundo rural também. Hoje as famílias nas cidades estão dispersas e há falta de redes sociais.
Mas as crianças vivem essa ilusão com as redes sociais tecnológicas…
Sim, claro. Têm x amigos mas são virtuais, não se conhecem. E mesmo quando estão lado a lado, mandam mensagens uns aos outros. Os professores dizem que nos intervalos os miúdos estão todos lado a lado a teclar.
Isto resolve-se limitando o acesso às tecnologias até determinada idade?
Mas como se limita? Onde não há internet? E como se monitoriza?
É preciso forçar as crianças a brincarem umas com as outras?
Sim. Alguns já nem sabem fazê-lo, têm déficits de competências sociais, não sabem convidar para brincar, pedir namoro. É tudo virtual, por emojis. Os miúdos falam por mensagens muito curtas e cheias de simbolismo, pelo que a probabilidade de mal entendidos também é maior. A subjetividade da comunicação gera dificuldade na comunicação.
Isso é assim tão generalizado?
A minha amostra é enviesada porque eu vejo as famílias sempre nalgum estado de sofrimento. Mas os adolescentes, numa maneira geral, é assim que comunicam. O que é assustador. Ou os pais contrariam isto, de uma forma ativa – e isto implica chatearmo-nos com os filhos, dizer não, acabou – ou então não sei…. O problema é que temos muitos pais sozinhos, no pós divórcio, e que têm medo da rejeição e da perda dos filhos, sendo, por isso, mais permissivos. Pensam: “Se eu digo que não, ele não quer vir para a minha casa”. Entre uma coisa e outra, os miúdos esticam a corda e é uma escalada.
Falta literacia sentimental aos pais? Há dificuldade em ler o que se passa dentro de cada um e de o expressar?
Sim. Não há emoções boas e emoções más mas vemos muito nas crianças a ideia de que a tristeza, a raiva e a zanga são coisas más. São emoções como as outras, desde que devidamente enquadradas e geridas. E mais uma vez os pais são modelos: se morre alguém e os pais choram às escondidas, porque não podem mostrar aos filhos que estão tristes, que sentido isso faz? Não estamos a dotar os miúdos de competências para lidar com as emoções, sejam positivas ou negativas. Para serem modelos, os pais têm de estar confortáveis com a sua parte emocional. Ou seja, eu posso zangar-me, tenho direito, mas não tenho direito de magoar, de partir uma mesa. A legitimidade entre a emoção e a legitimidade do comportamento. Tenho de ter capacidade para comunicar. Se isto não acontece no seio mais primário que é a família, onde vai acontecer?
Trabalho há 20 anos e, no meio de tantas experiências menos boas, aprendemos a distanciar-nos. Mas há dias em que chego a casa e choro. Contudo, alegra-me perceber que hoje se reflete muito mais sobre estas coisas, por isso quero acreditar que daqui a uns anos estejamos bem melhor.
Falando agora das famílias que, em vez de serem porto de abrigo, são o motivo do sofrimento das crianças, devido a maus tratos ou conflitos parentais. De que forma isso agudiza o sofrimento?
Quando os maus tratos acontecem no seio da família derruba-se a crença base que qualquer ser humano precisa de ter, a de que “eu pertenço a algo“, neste caso à família, à qual posso recorrer em caso de necessidade. Se quem devia proteger não o faz, e os miúdos não encontram alternativas, é o arruinar do sentimento de segurança. Por vezes encontram alternativas na família alargada, na escola, nos amigos, e isso são fatores protetores. Mas quando não têm competências para ir à procura, para pedir ajuda, é muito pior. Não é necessariamente hipotecar o futuro mas diminui claramente a esperança no futuro. Pois se eu não tenho uma base e uma vinculação seguras, como vou explorar o mundo e arriscar o que quer que seja? Surgem as ansiedades, inseguranças, a dificuldade em confiar. Cai por terra a ideia de que há pessoas que me amam incondicionalmente e estão dispostas a tudo por mim. Dificuldade em expressar emoções, em ter relações de intimidade emocional, em confiar, são características típicas das vinculações desorganizadas, associadas aos maus tratos e abandonos, aos pais inconsistentes, à falta de previsibilidade. As crianças precisam de perceber que, aconteça o que acontecer, o pai está lá. Isso condiciona depois a forma como se vinculam aos outros adultos e traduz-se nas relações de casal muito complicadas e também no exercício da parentalidade. Quando avaliamos pais mal tratantes, abusivos, é muito importante perceber como eles próprios se vincularam e cresceram.
Os pais têm noção disso? Conhecem-se?
Muitas vezes não. E como não têm capacidade de perceber, vão replicando o modelo disfuncional. As famílias que estão disponíveis, conseguem mudar. Mas nem todas as famílias são trabalháveis.
Ao lidar com estes sofrimentos, consegue acreditar no futuro e nas crianças?
Tento agarrar-me às coisas boas, como àquela criança que disse que o mais importante era a família. Tento valorizar estas situações boas que me fazem não desistir de acreditar no ser humano. No meio de tantas experiências menos boas, aprendemos a distanciar-nos, mas há dias em que chego a casa e choro.. Trabalho há 20 anos e alegra-me perceber que hoje se reflete muito mais sobre estas coisas, por isso quero acreditar que daqui a uns anos estejamos bem melhor.
Rute Agulhas é Psicóloga especialista em Psicologia clínica e da Saúde, Psicoterapia e Psicologia da Justiça. Docente universitária.
Fotografia: Nuno Pinto Fernandes
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.