Entre o vírus e a virtude

Não é fácil encontrar a reação justa diante da propagação deste surto. Na busca da melhor resposta possível teremos que prevenir-nos do que faz alastrar o alarmismo e desconfiança. Este é o tempo favorável ao exercício das nossas virtudes.

Não é fácil encontrar a reação justa diante da propagação deste surto. Na busca da melhor resposta possível teremos que prevenir-nos do que faz alastrar o alarmismo e desconfiança. Este é o tempo favorável ao exercício das nossas virtudes.

O desconhecido traz insegurança, confronta-nos com a incapacidade de controlar e prever tudo. A propagação da Covid-19 expõe-nos, enquanto comunidade, a essa insegurança. Rapidamente se disseminaram formas variadas de procurar lidar com esta insegurança: alarmismos, teorias da conspiração e diversas formas de procurar relativizar ou negar a gravidade da situação. Nenhuma destas atitudes ajuda. Não é fácil encontrar a reação justa, a atitude equilibrada ou o tom apropriado. Mas sabemos que o medo tende a corroer os laços sociais e comunitários e, por isso, na busca da melhor resposta possível teremos que prevenir-nos de tudo o que possa alastrar o alarmismo, a ansiedade e a desconfiança. Uma vivência espiritual profunda, tocada pelo modo como Jesus se relaciona com cada pessoa, pode ser o melhor meio para encontrar a atitude mais ajustada.

A Quaresma é um tempo propício à conversão da nossa sensibilidade. Como podemos estar atentos e cuidar? Como podemos fazer uma eventual experiência de quarentena sem perder a capacidade de ter gestos e palavras oportunas e de proximidade? Este é um tempo que nos pede o exercício das nossas melhores virtudes. Podemos crescer em prudência, humildade, abnegação e solidariedade. Podemos crescer em hospitalidade.

1 – Do alarmismo à prudência

Sem alarmismos, importa estar atento. Ser exigente com as autoridades responsáveis por gerir a situação, sem ter a pretensão de sabermos mais do que elas, dando-nos ao luxo de sermos seletivos nas indicações que seguimos ou deixamos de seguir. Autoridades como a Organização Mundial de Saúde têm pedido rigor a lidar com este tema. A melhor forma de fazermos a nossa parte é ir cumprindo o que nos é pedido. Talvez em algum momento isso nos possa parecer excessivo, mas é importante recordar que, desde o momento em que uma medida é decretada, até que os seus efeitos se façam sentir, são precisos alguns dias. Deste modo, seria imprudente esperar que as coisas se agravassem para começar a fazer tudo aquilo que pode impedir o seu agravamento. A incapacidade de prever como as coisas vão evoluir, a necessidade de proteger a comunidade e, em especial, os mais frágeis e vulneráveis do contágio e das suas consequências, exige-nos essa atitude. É provável que a nossa vida venha a ser mais afetada do que aquilo que imaginávamos ou gostaríamos. Não se trata de ser alarmista, mas prudente. 

2 – Isto não é o dia seguinte de um Porto-Benfica

Já sabemos que o modo como diversos temas são discutidos no espaço público é cada vez mais semelhante ao tom usado em programas de comentário futebolístico. Mas neste, como em tantos outros temas, é irrelevante quem fala mais alto, quem consegue o melhor efeito comunicativo ou quem diz a frase mais sonante. Aqui as opiniões não valem todas o mesmo. Por muitas leituras que façamos, não podemos encher-nos de orgulho e de opinião entupindo as redes sociais e as conversas de certezas sobre aquilo que não conhecemos. A humildade é uma ótima ajuda. Calar em vez de opinar permite que o que é dito por quem sabe seja ouvido e não se perca no ruído. Este pode ser um bom momento para rever o modo como nos expressamos nas redes sociais: O que partilho? Porque partilho? Ajudará a uma atitude de maior cuidado e prevenção? É credível, especulativo? Convoca para o compromisso ou dissemina uma crítica paralisadora?

Vírus significa veneno. Virtude significa força. Não temos a cura do vírus nas nossas mãos, mas naquilo que dependa da nossa vontade podemos exercitar as virtudes que fazem de um momento difícil um tempo favorável a um bem verdadeiramente maior.

3 –  Não sou só eu que fico contaminado 

Nos últimos dias fomos percebendo como é difícil aceder aos pedidos que são feitos como medidas preventivas. Isso aconteceu na recusa de algumas pessoas em receber a comunhão na mão e na substituição da quarentena por passeios ou idas à praia ou ao café. Evitar ser contagiado beneficia o próprio mas também é um serviço à comunidade porque se previne outros contágios. Às vezes parece difícil encontrar formas de exercitar a abnegação, a capacidade de abdicarmos de coisas que são importantes ou agradáveis para nós para bem dos outros. Não estará aqui uma oportunidade para exercitar esta prática espiritual?   

4 – No isolamento, solidariedade

Muitas medidas que nos vão sendo pedidas implicam restrição do contacto social. Algumas pessoas já estão a sofrer um maior isolamento, nomeadamente os doentes internados em hospitais e alguns idosos que vivem em lares e outras instituições de acolhimento. São medidas tomadas com o desejo de proteger a saúde de todos e de cada um. Será necessário encontrar formas de expressar a essas pessoas o nosso cuidado e atenção. A este nível, como já lembrou o Papa, cabe aos padres ter um papel ativo.

Por outro lado, a todas as famílias que vão sendo confrontadas com a necessidade de ficar mais tempo em casa, cumprindo períodos de quarentena, é feito um convite de aproveitarem este tempo para reforçarem os laços que as unem. Talvez haja tempo para uma conversa eternamente adiada ou se possa jogar em família o jogo de tabuleiro há muito arrumado. Talvez se possa desligar a atenção dos telemóveis para estar atento a quem está perto. Poderá haver boas leituras a fazer, leituras que não nos fechem no nosso mundo mas que alarguem a nossa sensibilidade.

5 – E, no entanto, ela move-se 

E, entretanto, a terra continua a girar. O desejo de cuidar e proteger não pode afastar a nossa atenção e sensibilidade de dramas como o dos refugiados. É compreensível a atenção mediática dada a esta situação. Mas o afunilamento mediático destes tempos não pode afunilar o nosso coração. A universalidade da hospitalidade cristã não foi posta entre parêntesis.

Poderia também acontecer que, ao experimentar na pele as consequências de algumas restrições, caíssemos na tentação da vitimização. Em vez disso, talvez possamos experimentar compaixão por tantos que sofrem consequências de outras crises, que vivem privados de liberdade, sem saber das suas famílias, por quem a doença isola da sociedade. E podemos também passar da compaixão a algum ato concreto que beneficie essas pessoas. O sarcasmo dos que dizem “tantas pessoas a morrer de fome e só se fala do coronavírus” pode não ser mais de que uma justificação da indiferença.

Vírus significa veneno. Virtude significa força. Não temos a cura do vírus nas nossas mãos, mas naquilo que dependa da nossa vontade podemos exercitar as virtudes que fazem de um momento difícil um tempo favorável a um bem verdadeiramente maior.

 

Página informativa da Direção Geral de Saúde. 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.