“E não nos deixes cair em tentação”

Os nossos convidados de hoje: Ewan McGregor, desta vez num papel diferente daquele que desempenha em Star Wars, santo Agostinho e o Manchester United. Leia e não caia em tentação...

Os nossos convidados de hoje: Ewan McGregor, desta vez num papel diferente daquele que desempenha em Star Wars, santo Agostinho e o Manchester United. Leia e não caia em tentação...

Como mel para a boca

 

https://www.youtube.com/watch?v=HOGUYt9f0fU

 

Quando Ewan McGregor não representa Obi-Wan Kenobi — o famoso mestre Jedi dos filmes Star Wars, para os incultos —  representa Jesus em Last Days in the Desert. Este filme de 2015 sobre as tentações de Jesus foi realizado por Rodrigo Garcia. Veja o trailer desta longa metragem surpreendente, que infelizmente não foi exibida em Portugal!

 


O texto bíblico

 

Esta semana não apresentamos um, mas três textos da Bíblia (muito curtos, não se assuste!). O primeiro faz parte da introdução ao relato das tentações de Jesus no deserto (reveja o artigo sobre a Satanás e as tentações de Cristo.) 

Primeiro texto:  Então, o Espírito conduziu Jesus ao deserto, a fim de ser tentado pelo diabo. Jejuou durante quarenta dias e quarenta noites e, por fim, teve fome. (Mt 4, 1-2)

O segundo texto é a famosa «oração do Senhor», aquela que Jesus ensina aos seus discípulos:

Pai nosso, que estás no Céu,
santificado seja o teu nome,
venha o teu Reino;
faça-se a tua vontade,
como no Céu, assim também na terra.
Dá-nos hoje o nosso pão de cada dia;
perdoa as nossas ofensas,
como nós perdoámos a quem nos tem ofendido;
e não nos deixes cair em tentação,
mas livra-nos do mal.
(Mt 6, 9-13)

O terceiro situa-se no início da Paixão de Jesus. Apesar de os discípulos não terem tido força para vigiar com Ele, Jesus voltou para o pé deles (veja o artigo sobre este episódio):

Voltando para junto dos discípulos, encontrou-os a dormir e disse a Pedro: «Nem sequer pudeste vigiar uma hora comigo! Vigiai e orai, para não cairdes em tentação. O espírito está pronto, mas a carne é débil. (Mt 26, 40-41)

 


O esclarecimento

 

Em dezembro de 2017 foi modificada em toda a Igreja Católica a tradução litúrgica do Pai-Nosso em francês. A antiga tradução «não nos sujeites à tentação» foi substituída por:
«Não nos deixes entrar em tentação», tornando-se semelhante à versão rezada em português.

Na semana passada relíamos o relato das tentações de Jesus no deserto. Alguns leitores ficaram surpreendidos ao ler que foi o Espírito que conduziu Jesus ao lugar das tentações. E, de facto, isso coloca uma questão inquietante:

Deus sujeita-nos à tentação ou não?

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O diabo é o emblema do clube de futebol inglês Manchester United, apelidado de Red devils (os diabos vermelhos).

 

#1 “Não nos sujeites à tentação”: será que o Pai também é tentador?

Desde sempre, a antiga tradução francesa («Não nos sujeites à tentação») fez levantar uma forte objeção, na medida em que contradiz literalmente um ensinamento da Escritura muito claro:

«Ninguém diga, quando for tentado para o mal: ‘É Deus que me tenta’. Porque Deus não é tentado pelo mal, nem tenta ninguém» (Tg 1,13)

De facto, «sujeitar alguém a alguma coisa», em português corrente, significa provocar a uma determinada pessoa um sofrimento qualquer. Um tal pedido corria o risco de gerar imagens deturpadas de Deus, no espírito dos fiéis, ao mesmo tempo que Lhe chamavam «Pai»: a imagem de um Deus tirano, caprichoso, que podia decidir sujeitar-nos à tentação, e a quem devíamos implorar que não o fizesse, mesmo sem saber porquê. Ou pior, a imagem de um Deus tentador. Em suma, a formulação podia ser mal compreendida, como uma espécie de blasfémia.

 

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Carl Heinrich Bloch, Getsémani (óleo sobre placa de cobre, 1873), Museu de História Natural do Castelo de Frederiksborg, Frederiksborg Slotskirke, Dinamarca

#2 Então, por que é que o Espírito conduziu Jesus ao deserto?

A verdade é que há um só Deus, Criador de tudo, e não um Deus do mal e um Deus do bem, em permanente luta entre si.

Portanto, se há tentações, é porque são permitidas (se não desejadas), em última análise… por Deus! Teologicamente, a formulação «não nos sujeites à tentação» refere-se à omnipotência do Deus único.

Na Bíblia, Deus permite que os crentes, sobretudo os maiores, sejam expostos à tentação. Por exemplo, Ele deixa que Satanás ponha Job à prova… O próprio Cristo foi conduzido pelo Espírito ao deserto, “a fim de ser tentado” (Mt, 4,11) e, no Getsémani, Ele adverte os seus discípulos para que rezem “para não cair em tentação” (Mt 26,41).

O diabo e os maus espíritos lançam armadilhas, as tentações, incitam a fazer o mal, a cair, a destruir. Mas o Deus vivo e verdadeiro permite as tentações e promete a Sua força (a Sua graça) ao crente, para que resista e cresça, através destas provas.

 

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Pietro Perugino, ou simplesmente Perugino (1446-1523), A Agonia no jardim (óleo sobre tela, 1483-1495), Galeria Uffizi, Florença, Itália

Por fim, nas palavras de um judeu piedoso do 1º século, a «tentação» é muito mais do que um mal moral ao qual é preciso resistir: segundo as Escrituras, como foi recordado anteriormente, a tentação é por vezes uma prova a que somos submetidos por vontade de Deus. Jesus ensina aos crentes a pedir ao Pai que não lhes dê uma provação tão grande que ponha em perigo a sua fidelidade, ensina-os a pedir que tenha em conta as fraquezas deles e que lhes conceda a Sua graça!

Seguindo o convite de Jesus no Getsémani (Mt 26,41: «Vigiai e orai, para não cairdes em tentação»), os crentes pedem desde então: «não nos deixes cair em tentação».

 


A palavra final

 

Então o que devem fazer os crentes francófonos (e nós também!), para não cair em tentação em 2019? A resposta não mudou desde… santo Agostinho: é preciso seguir Jesus na provação.

«De facto, Cristo era tentado pelo diabo. Em Cristo, porém, tu é que eras tentado, porque de ti Cristo assumiu a carne, e de Si te deu a salvação; de ti recebeu a morte, de Si te concedeu a vida; de ti aceitou as injúrias, de Si te concedeu as honras; portanto, foi de ti que Lhe adveio a tentação, para te dar a vitória. Se nele fomos tentados, nele superamos o diabo. Notas que Cristo foi tentado, e não atendes a que Ele venceu? Reconhece-te a ti mesmo n’Ele quando tentado, e reconhece-te n’Ele vencedor».

(Agostinho de Hipona, Enarratio in Psalmis, Ps 60,2-3, CCL39,766.)

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.


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