No dia 4 de Agosto, por volta das seis da tarde, Beirute foi abalada por um conjunto de explosões violentas que provocaram cerca de 180 mortes, mais de 6000 pessoas feridas, cerca de duzentos mil desalojados e largos milhões de euros de prejuízos numa das zonas mais movimentadas e emblemáticas da cidade. Infelizmente, estes números são apenas uma fracção dos problemas que afligem a sociedade libanesa. O que se está a passar no Líbano?
Nos finais de 2019, as pessoas começaram a descer às ruas para protestar, naquela que vem sendo chamada a Revolução de Outubro. Uma multidão de gente de idades, confissões e contextos profissionais muito diversos denunciava nas praças das cidades libanesas a sua revolta contra aquilo que sentia serem sinais de má governação e corrupção em quase todos os sectores da vida pública. Da electricidade às águas e saneamento básico, do ensino à saúde: como explicar as falhas nestes serviços fundamentais, e como compreender o crescimento astronómico da dívida pública do Estado nestas áreas, enquanto empresas privadas parecem florescer?
Porém, a longo prazo, o Pacto parece ter consubstanciado uma certa lógica de clã. Em vez de pôr as comunidades em diálogo, o acordo encorajou políticas de bloco baseadas em atitudes identitárias e exclusivistas.
Mais do que uma questão de promiscuidade entre serviços públicos e interesses privados, muitos libaneses vêem aqui os sinais de um problema maior, que toca o próprio modelo político do país. Ou seja, para boa parte da população não se trata só de uma questão de políticos corruptos que, em vez de garantirem o bom funcionamento das empresas públicas, enriquecem à custa da sua ruína, através de compadrios com empresas privadas. O próprio sistema político, dizem, preserva e fomenta um espírito de clientelismo entre pequenos grupos, em prejuízo do bem comum. Que sistema político é esse?
A independência do Líbano, em 1943, consumou-se com o estabelecimento de um Pacto Nacional: um compromisso verbal entre os representantes das principais comunidades religiosas existentes no território que procurava, através da distribuição de poderes políticos, garantir a representatividade de cada uma e a harmonia entre todas. Tanto maronitas e gregos ortodoxos, do lado cristão, como sunitas, xiitas e drusos, do lado muçulmano, tinham assim assento parlamentar. Mas, se o Pacto distribuía poderes às comunidades, também lhes pedia que abdicassem de certas expectativas e alianças, fosse com o ocidente cristão, fosse com o oriente muçulmano (em particular sírio).
Como virtude principal, o Pacto corresponde a um esforço de reconhecer o significado e importância social e política das diferentes confissões religiosas, evitando também eventuais sentimentos de exclusão e de discriminação. No fundo, procura dar voz a todas as comunidades. Contudo, desde os seus começos, este acordo suscitou críticas e suspeitas. Ao distribuir os poderes pelas comunidades, deu uma ligeira vantagem aos grupos cristãos, seja em número de assentos no parlamento (6 cristãos para 5 muçulmanos), seja em importância (o presidente é sempre maronita). Este pequeno desequilíbrio de poderes foi justificado, na altura, com base nuns censos que então indicavam uma magríssima maioria cristã no país.
Porém, a longo prazo, o Pacto parece ter consubstanciado uma certa lógica de clã. Em vez de pôr as comunidades em diálogo, o acordo encorajou políticas de bloco baseadas em atitudes identitárias e exclusivistas. Com as desigualdades sociais e económicas crescentes entre os diferentes grupos, o desequilíbrio parlamentar foi-se tornando cada vez «incómodo».
Em boa verdade, a história das desigualdades entre as diferentes confissões, nesta região, é antiga e complexa. A posição de sunitas, xiitas, drusos e cristãos no puzzle social foi variando, muitas vezes devido à intervenção de países estrangeiros como a Turquia, a Síria, o Reino Unido ou a França, cada um favorecendo um grupo em detrimento dos restantes. Portanto, o Pacto Nacional sucedeu a uma história atribulada de comunidades em concorrência, e coincidiu com um período de claro crescendo dos cristãos maronitas.
Na sua maioria, as manifestações aconteciam em tendas dispersas pelas praças das cidades, nas quais as pessoas se juntavam para verbalizar desilusões e imaginar, em conjunto, hipóteses de futuro.
Nas décadas seguintes, as tensões entre os diferentes grupos apenas irão aumentar em torno de suspeitas e ressentimentos comuns, concretamente as ideias de que há grupos privilegiados, e de que tais grupos estão a mando de outras nações. O boom económico dos anos 1950 e 1960 que fez de Beirute uma das cidades mais ricas de todo o Médio Oriente veio agudizar ainda mais as assimetrias sociais, com cristãos e sunitas entre os mais ricos, e xiitas e drusos entre os mais pobres. A estes juntavam-se ainda as largas dezenas de milhar de refugiados palestinianos instalados no país.
Chegamos pois a meados de 1970 com um Líbano polarizado entre empresários e pedintes, entre o glamour ocidental e as aspirações árabes, entre cristãos e muçulmanos, entre nativos e refugiados. Camuflada pela beleza de Beirute estava uma crise social grave que não tardaria a eclodir numa trágica guerra civil, que se estendeu por longos 15 anos (1975-1990).
[Para saber mais, recomendo a reportagem Lebanon Civil War 1976, The Agony of Lebanon (This Week, 1976) e ainda o artigo testemunhal Five journalists share their most vivid memories of the Lebanese civil war (L’Orient-Le Jour, 15.IV.2019).]
Regressando à Revolução de Outubro de 2019. Nas ruas, muitos cristãos, sunitas e drusos, mas também xiitas (não obstante as renitências do Hezbollah), pediam a reforma do sistema, apelando à criação de um novo «contrato social». De iniciativa popular e livre de qualquer filiação partidária e confessional, os protestos eram muito mais do que pneus a arder bloqueando estradas (como aconteceu nos primeiros dias) e vozes enfurecidas. Na sua maioria, as manifestações aconteciam em tendas dispersas pelas praças das cidades, nas quais as pessoas se juntavam para verbalizar desilusões e imaginar, em conjunto, hipóteses de futuro.
Mas, no centro de quase todas as conversas estava a intuição de que, para se libertar da corrupção, o país precisava de pôr termo ao Pacto Nacional de 1943.
Certamente, as manifestações também foram ocasião de outras lutas, como bem expôs Alexandra Lucas Coelho num artigo recente (A luta delas em Beirute, entre ficar e partir – reservado a assinantes). Mas, no centro de quase todas as conversas estava a intuição de que, para se libertar da corrupção, o país precisava de pôr termo ao Pacto Nacional de 1943. Para se alcançar uma verdadeira unidade nacional, diziam, é fundamental desconfessionalizar a vida política.
Simplesmente, as manifestações populares foram acolhidas com frieza pela classe política, que não mostrou qualquer disponibilidade para acompanhar a população neste debate, o que só veio confirmar o sentimento de desconfiança e distanciamento a respeito dos seus dirigentes.
Os acontecimentos de 4 de Agosto último vieram consumar este divórcio político e social. Perante a inépcia dos seus políticos, muitos libaneses pensam agora partir do país, em busca um sítio pacífico e justo. Não foram somente os vidros, as portas ou as janelas que se quebraram: foi o próprio país que se estilhaçou, aos olhos dos libaneses. Para muitos, as explosões significam o fim de um sonho chamado Líbano.
A Campanha para “Ajudar o Líbano” continua ativa, colabore aqui.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.