1. Quando me batem à porta…
Numa (só aparente, porque sempre tendente…) novidade na história da Igreja, o Papa Francisco coloca no centro da vida cristã o que nunca deixou de o ser: a fraternidade. Toca-me particularmente a sua mais recente encíclica, Fratelli Tutti, na qual Francisco convoca a Igreja para a sua missão essencial, nos tempos concretos que vivemos. É essa enculturação no tempo e no espaço que habitamos que renova todas as coisas. Este documento ajuda-me a entender, com a razão e com o coração, o trilho, o perfume e a inspiração da resposta a trabalhar face à grande pergunta da identidade crente: “onde está o teu irmão?” (Gn 4, 9-10).
Confesso, porém, uma extrema dificuldade, oxalá não bloqueante, em praticar estas indicações, como forma vertida nos lugares que piso. É no “como fazer” que se tece a ambiguidade e o desafio.
Recordo com ternura a inspiração de Santo Afonso, um simples porteiro que, segundo se conta, quando ouvia a campainha da porta dizia a si mesmo e a quem estivesse por perto: “já lá vou, Senhor”. Esta será, em meu entender, a luz que sempre iluminará: cada um que me solicita torna-se o centro (o Senhor…), que merece atenção, carinho e eficácia.
Recordo com ternura a inspiração de Santo Afonso, um simples porteiro que, segundo se conta, quando ouvia a campainha da porta dizia a si mesmo e a quem estivesse por perto: “já lá vou, Senhor”.
2. Convergir com a ação social institucionalizada
Sou abordado por pessoas em dificuldade social que, aqui e ali, me pedem ajuda. Tento, muitas vezes em família, dar alguma sequência em pequenos gestos que envolvem coisas como: otimizar processos de acesso à saúde, alavancar imbróglios burocráticos na relação com as finanças, a segurança social ou as entidades municipais, ajudar na vida escolar de filhos, mediar alguns conflitos, etc. A experiência de alguns anos e algumas situações delicadas de frutos discutíveis, leva-me a sugerir a mim mesmo, o seguinte:
a) Não empreender gestos e ações que não foram solicitados ou, pelo menos, cuja confirmação de interesse pela parte de quem os recebe não esteja clara. Tenho no meu passado nesta área muitas iniciativas cheias de diligências, procedimentos e energia que ‘morreram na praia’ muito por falta de aferição minha do que era francamente desejado, possível e sustentável…
b) Não dar dinheiro diretamente. Salvo raríssimas e ponderadíssimas exceções é sempre melhor evitar a dádiva de dinheiro, “tout court”.
c) Escutar bem a necessidade, o contexto e o que me é solicitado.
d) Não prometer nem o impossível nem o que não puder fazer. O mais infecundo, nestes cenários, é o dizer que se vai fazer e depois esquecer (no limite, é a acumulação dessas não correspondências que trouxe até à fragilidade social quem nela está…).
e) Evitar os julgamentos prévios, que contaminam a generosidade. Os perigosos “vai trabalhar malandro”, “é para a droga” ou “recebe RSI e toma o pequeno almoço na pastelaria” são ótimos relaxantes escapatórios e são de um simplismo básico, que inibe o necessário olhar mais profundo, exigente e atuante.
f) Por fim, algo que nem sempre pratiquei, mas que considero hoje vital: quando tal se justifica (na maioria dos casos assim é) procurar saber quem é a equipa de assistência social ou apoio já no terreno e convergir com esses esforços. Nos dias de hoje não avanço em procedimentos mais elaborados de ajuda sem indagar, com o conhecimento de quem me procura, junto dos técnicos ou outros agentes já no cenário da ajuda. Tudo isto ganha frutos adicionais quando feito em rede. O contrário, voluntarista e porventura sentimentalmente, gera em muitos casos dispersão e, não raras vezes, contradição de ajudas…
A realidade da fragilidade socioeconómica é de uma complexidade gritante. Por conseguinte, a ação dos técnicos de ação social, antes de mais louvável, mas, ao mesmo tempo, muito exigente e às vezes frustrante, pede colaboração dos pares (vizinhos, amigos, familiares, cidadãos… cada um de nós). Esta colaboração, porém, deverá ser feita de forma transparente e coerente, colaborando, de facto, e nunca concorrendo ou divergindo…
A realidade da fragilidade socioeconómica é de uma complexidade gritante. Por conseguinte, a ação dos técnicos de ação social, antes de mais louvável, mas, ao mesmo tempo, muito exigente e às vezes frustrante, pede colaboração dos pares (vizinhos, amigos, familiares, cidadãos… cada um de nós).
3. Um ‘mimo’ e oração: gestos que cabem sempre
Acontece-me inúmeras vezes querer articular com a assistente socio-caritativa já em ação, face a um pedido de alguém e, quem me está a solicitar ajuda, negar esse envolvimento. Posso sempre fazer qualquer coisa. Chamo a isso mesmo os ‘mimos’, tipicamente radicados em gestos simples:
a) Ouvir. Serei simples neste item e afirmo, com alguma ironia, que nunca fui tão bom a enunciar o que não pratico assim tão bem. Quando me distraio, com pressa de muito fazer ou desvalorizando o que importa, claudico neste propósito…
b) Dar de comer. Acontece tipicamente em cafés, restaurantes, hipermercados. Pode-se sempre dar algo de comer se existir vestígio de fome. Melhor ainda se for aferido pelo gosto de quem solicita (“o que gostaria de comer”?). Personalizar, portanto… E evitar dar o supérfluo, mas ser capaz de dar o que consumo também eu mesmo…
c) Dar em chave simbólica. Costumo ter no carro caramelos (seria criativo se também tivesse cigarros, mesmo sabendo que fazem menos bem, sei que são mimos para muitos). Quando me pedem, principalmente em filas de trânsito, estacionamentos, etc, embrulho um ou outro caramelo num sorriso. Em regra resulta… Seja um chocolate, uma bolacha, uma flor… o que for…
d) Perguntar o nome e conversar um pouco. Principalmente no espaço incógnito da rua. Por vezes não tenho muito sucesso, porque a agenda de quem me pede é legitimamente outra, mas procuro perguntar o nome a quem me aborda e saber um pouco da sua vida. Bem sei como não aguentaria esse ritmo de falar com todas as pessoas que me pedem se tivesse uma vida numa grande cidade (e isto alimenta-me em certa crítica da própria metáfora urbana…)
e) Oferecer… quando se conhece mais a pessoa, uma peça de roupa ou um elemento de decoração personalizados, que se adivinhem ser bem acolhidos.
No formato crente, pode-se trazer à oração estas pessoas. Nomeá-las como presenças na triangulação com a transcendência amorosa. Pedir sempre a graça da lucidez e de nos abrirmos todos a receber e construir o que possa ajudar no sonho fraterno de Deus, que teima em querer usar as nossas mãos…
4. Ovos-galinhas-ovos…
A conhecida metáfora de “dar a cana de pesca e não o peixe” é uma ótima sugestão para a ação social sustentável. Mas a complexidade, a surpresa e a dificuldade espreitam igualmente, mesmo sob esta inspiração. Um exemplo que fala por si: fitados na dita ‘cana de pesca’ entendemos mudar um ritual que tínhamos de dar ovos caseiros produzidos aqui no espaço em que vivemos a algumas famílias. Perguntamos se aceitariam, em vez, potenciando a vida no campo e aproveitando restos de comida, as próprias ervas da natureza, etc, meia dúzia de galinhas poedeiras e uma boa dose de ração de ignição, para dar início sustentável a produção própria. Resposta sim. Ação empreendida. Alguns meses depois “as galinhas foram comidas pelos cães”. Algum humor. Voltamos a dar ovos caseiros, os mimos que sempre valem. Um desconcerto que nos reforça o tónus da complexidade de tanta desgovernação acumulada, génese da pobreza.
No formato crente, pode-se trazer à oração estas pessoas. Nomeá-las como presenças na triangulação com a transcendência amorosa.
5. Ir ainda mais além passará pelo empenhamento político, económico, educativo, cultural…
Perante a multifactoralidade do cenário socioeconómico no nosso país e no mundo, há que estar conscientes de que muitos dos desafios colocados são de ordem política, económica, diplomática (até militar, em alguns casos mais extremos). O empenhamento nestas áreas – e naquela que todas potencia no médio-longo prazo, que é a educação, pode e deve ser resignificado por cada um e por todos nós. O investimento neste ‘macro’, que é a intervenção cívico-política é saudavelmente compatível com a ação ‘micro’ no terreno que, mesmo que simbólica, nos permite algum toque de amparo e, claro está, um mergulho na realidade. A este propósito assinalo que algumas linhas de pensamento e eventual ação, porventura um tanto descontinuistas, como o Rendimento Básico Incondicional (RBI), podem ser ensaiadas.
Na senda desta reflexão não me parecem nada desprezíveis, muito pelo contrário, as doações discernidas e generosas a instituições de confiança e com provas dadas de credibilidade e eficácia na ação socio-económica, nas mais variadas escalas (e porque o mundo é pequeno e globalizado). Por exemplo, o Banco Alimentar Contra a Fome, a Fundação Gonçalo da Silveira (FGS) ou os Leigos para o Desenvolvimento. Participar doando a estas instituições é, em si mesmo, uma aferição de eficácia.
Perigoso, seria uma qualquer instalação nossa “em sofá”, ou num conforto pelo que já se faz (intrinsecamente insuficiente) ou na prisão do que se não consegue fazer. Pedir sede na ação social é pedir lucidez de leitura e de ação, mas, acima de tudo, saber-se esperançosamente irrequieto!
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.