Estes são dias em que na Igreja e em torno dela, na maior diversidade ou disparidade das vozes que com ela ou muito contra ela sempre se levantam, se vivem, mesmo que no relativo silêncio, momentos de grande significado, seja na teoria, sempre necessária, seja, sobretudo, na praxis decisória e orgânica de uma das mais antigas, e persistentes, instituições do mundo. Como é sabido, de 21 a 24 deste mês de fevereiro reúnem-se em Roma, oriundos dos cinco continentes, líderes eclesiais e outras pessoas diretamente interessadas, ou empenhadas, nos processos relativos à Proteção da Infância. Aos Bispos e Arcebispos, não poucos entre eles Cardeais, e ao próprio Papa, juntar-se-ão ainda os Superiores Gerais das principais Ordens Religiosas da Igreja, tanto masculinas como femininas, bem como diversos especialistas expressamente convocados para a ocasião e, como de resto não poderia deixar de ser, vários representantes das pessoas que em seu tempo de crianças foram vítimas de abusos sexuais perpetrados por pessoas institucionalmente ligadas à Igreja. O encontro, um momento-chave no processo em que desde há anos a Igreja Católica se encontra, acontece por virtude da repetidamente manifesta e preclara vontade de Papa Francisco de fazer entrar a Igreja numa nova era, a saber, a da mais completa e exigente aposta num dos aspetos essenciais da sua missão: o serviço às crianças e às pessoas em situação de vulnerabilidade. O encontro, convocado de urgência no outono do ano passado, foi preparado por uma Comissão presidida pelo Cardeal BlaseCupich, de Chicago, e que contou com a participação direta do Cardeal Oswald Gracias, de Mumbai, na Índia, e do Arcebispo Charles Scicluna, de Malta, bem como de um pequeno grupo de especialistas, entre os quais Hans Zollner, da Universidade Gregoriana.
Como é lógico, e seria de esperar, o acontecimento dos próximos dias aqui em Roma está a gerar interesse nos mais diversos quadrantes da sociedade, especialmente entre os meios de comunicação social. É justo e normal que assim aconteça. Mas em mais lado nenhum pode, ou deveria, este importantíssimo evento eclesial suscitar maior interesse e, sobretudo, empenho do que entre os batizados, homens e mulheres, leigos ou consagrados, padres e Bispos, enfim, entre quem quer que seja que na Igreja tenha um sentido mínimo do que seja a nossa missão ou o mais elementar sentido da responsabilidade, desde logo perante o quadro legal das sociedades a que, pelo menos no dito Ocidente, pertencemos.
O problema dos Abusos Sexuais é de todos; ele é hoje, mais do que nunca, um problema verdadeiramente global. Mas no mundo não há instituição mais preocupada com o bem de todas as pessoas, a começar pelo das crianças, tanto mais que o respeito pela infância é uma das suas marcas mais originais, e, portanto, essenciais, do que a Igreja, a communio de todo o Povo de Deus. Por isso, a todo o corpo eclesial pertence por direito e obrigação, mas também por especial vocação, a missão de promover, e sempre que possível garantir, o respeito absoluto pela integridade psicossexual das crianças, algo que só será possível mediante trabalho afincado, rigoroso e informado, para além de constante vigilância e sentido do discernimento, de modo a que à infância dos nossos dias, como à dos tempos futuros, se possa garantir, de forma eficaz e comprometida, a segurança imprescindível a um crescimento harmonioso e saudável, evitando tudo quanto, dentro do humanamente possível, possa de alguma forma comprometer essa dimensão essencial do Bem Comum de toda a sociedade. Ninguém, absolutamente ninguém, em contexto algum, tem o direito de fazer às crianças o que quer que seja que prejudique ou comprometa o seu crescimento e desenvolvimento futuro. Um adulto, portanto, nunca, de forma alguma, em contexto algum, pode abusar de quem, desde logo por razões de idade, esteja sob a sua autoridade, dependente do seu poder, em situação de radical desigualdade seja perante a lei seja, desde logo, em termos de força e poder. A Igreja sempre disse, a começar pela Palavra e o Testemunho do seu Fundador, Jesus de Nazaré, o Cristo de Deus, que as crianças são sujeitos de inalienável dignidade, cada uma delas, desde o seu momento inicial, criada à Imagem e Semelhança de Deus em absoluto.
Em Portugal, como o resto da Europa e do mundo, continuamos a precisar de uma cultura fundada no mais profundo respeito pelas crianças e por todas as pessoas vulneráveis; Portugal, tal como o resto do mundo precisa, certamente, de uma Igreja com líderes maduros e responsáveis, mas também de classes profissionais onde a ética do Respeito pelos mais pequenos e vulneráveis seja um dado de facto, uma estrutura comportamental, uma forma de vida à altura da nossa comum humanidade. Nesse sentido, podemos agradecer algum dos trabalhos de investigação recentemente publicados ou atualmente em curso relativamente ao tema dos abusos. Mas fazer da Igreja um bode-expiatório, algo que bem pode arrastar leitores ou dar fama aos jornalistas de serviço, em minha modesta opinião, nunca por si mesmo contribuirá de forma decisiva para o único que a todos interessa: garantir e aprofundar o nosso comum sistema protetivo da Infância e Juventude.
Em suma, pelo menos uma coisa espero que resulte, e de forma eficaz o seja, do Encontro Mundial que estes dias está a acontecer aqui em Roma, a capital, simbólica e não só, da Igreja Universal: um novo grito de alerta, um coro de vozes responsáveis e autorizadas a dizer em uníssono e com toda a verdade humanamente possível o que as pessoas eticamente amadurecidas e com o sentido da decência não podem deixar de proclamar, seja na Igreja seja no resto da Sociedade, em relação aos Abusos Sexuais perpetrados contra crianças: Nunca mais! Estes dias, e mais uma vez, só que agora ao mais alto nível possível, a Igreja proclama ao mundo a sua vontade e firme determinação de lutar contra um dos flagelos do tempo em que nos toca viver. E o meu desejo seria que outras Organizações de alcance global, a começar pelas Nações Unidas, se possam juntar, todos com boa-fé e sentido da cooperação, à Igreja neste seu renovado esforço de dar remédio eficaz a este mal tão difuso no mundo dos nossos dias, o da violência contra jovens e crianças.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.