A santidade reveste-se de quotidiano

Onde pode entrar a ajuda extra ao caminho de santidade? Tendo em conta os tempos que atravessamos, penso, de entre outras possibilidades, que viver a santidade que nos vem de Deus é viver o silêncio, a escuta e o anúncio.

Onde pode entrar a ajuda extra ao caminho de santidade? Tendo em conta os tempos que atravessamos, penso, de entre outras possibilidades, que viver a santidade que nos vem de Deus é viver o silêncio, a escuta e o anúncio.

“Olhe, não sou santo [ou santa], é o que é!” Expressão que ouço com frequência quando alguém me comenta alguma falha, pecado, desajuste de acção, falta de paciência ou cansaço. Sai como um desabafo. E a mim sai-me a pergunta: “Que imagem tem de ser santo? De santidade?” As respostas são igualmente frequentes: perfeitos, puros, que fazem tudo bem, estão sempre envoltos de graça e de graças.

O nosso inconsciente colectivo está marcado pela imagem ou ideia de santidade construída pelos chamados “santos dos altares”. Se formos a ver, um elevado número de santos é desde há muitos séculos, para não dizer os dois milénios de cristianismo, de vida religiosa consagrada, vulgo freiras, padres, frades. Apenas mais recentemente é que começam, e bem, a ser conhecidos mais santas e santos leigos, mais jovens, com vidas mais próximas do que se poderia dizer o quotidiano de grande parte das pessoas. Sim, esse quotidiano que apresenta os “santos ao pé da porta”, tais como recorda o Papa Francisco em “Alegrai-vos e exultai”, a Exortação Apostólica sobre a santidade no mundo actual, “os pais que criam os seus filhos com tanto amor, nos homens e mulheres que trabalham a fim de trazer o pão para casa, nos doentes, nas consagradas idosas que continuam a sorrir. (…) Esta é muitas vezes a santidade «ao pé da porta», daqueles que vivem perto de nós e são um reflexo da presença de Deus”.

Apenas mais recentemente é que começam, e bem, a ser conhecidos mais santas e santos leigos, mais jovens, com vidas mais próximas do que se poderia dizer o quotidiano de grande parte das pessoas.

Caminhar na santidade não é algo desencarnado, sem corpo, sem humanidade. Muito pelo contrário, a santidade implica viver no quotidiano a ser capaz de ser luz, de entrega com justiça e verdade no mundo que o rodeia, muitas vezes em grande sofrimento e exigência de vida. A santidade também integra o reconhecimento dos limites, percebendo-se, mesmo com muitas dores e dúvidas, que se vai tendo ajuda na força do Espírito. E se nós aprendemos por testemunho, começando na família, passando pelos educadores e políticos, sem esquecer as figuras públicas, ou influencers, de algum modo todos somos chamados a tomar consciência da responsabilidade de nos ajudarmos uns e outros a ser santos e santas desde a nossa vida simples, comum, normal de cada dia.

Onde pode entrar a ajuda extra ao caminho de santidade? Tendo em conta os tempos que atravessamos, penso, de entre outras possibilidades, que viver a santidade que nos vem de Deus é viver o silêncio, a escuta e o anúncio.

Os tempos actuais estão carregados de ruído. A quantidade de informação e contra-informação, as emoções a gritarem por atenção, o sentirmo-nos desorientados com o desconhecido desajustam o pensar com serenidade. É preciso ganhar distância e fazer silêncio. Todos somos capazes desse silêncio, mesmo que possa ser desconfortável ao início. Os santos também foram aprendendo a fazer silêncio, permitindo que a suave voz de Deus, ao jeito de brisa, se aproxime. Jesus antes de tomar grandes decisões recolhia-se em silêncio, na oração com o Pai. O silêncio bem acompanhado e orientado desvela a lucidez de pensamento e abre a possibilidade de escutar adequadamente os sinais dos tempos.

Os santos também foram aprendendo a fazer silêncio, permitindo que a suave voz de Deus, ao jeito de brisa, se aproxime.

Os santos sabem escutar. A escuta é uma das grandes formas de estar atento ao que circunda. O coração, nos seus momentos mais serenos, é capaz de escutar a realidade sem julgamentos precipitados e sem necessidade de defesas ou ataques. Se escuta que é preciso ajudar, ajuda no que pode. Se escuta que é preciso retirar, retira-se sem imposições. Se escuta que é preciso dar opinião, porque tem conhecimentos sobre a temática, partilha da sua sabedoria. Se escuta que é preciso abdicar da sua ideologia em nome da vida do outro, vive a humildade e liberdade em relação a si mesmo. Se escuta que é preciso colaborar, mesmo sabendo que a tradição não pode ser cumprida em nome do cuidado do outro, contribui no que for melhor para todos.

Ser santo, ao viver o silêncio e permitir-se escutar, é anunciar a mansidão, a misericórdia e a paz. O testemunho de santidade passa por mãos que acolhem e corações que iluminam os pequenos gestos de vida no quotidiano. Cada vez mais nos está a ser pedida a santidade no quotidiano, “ao pé da porta”. Cada pessoa é chamada a fazer a parte que lhe corresponde, com gestos e palavras de autenticidade, em profundo respeito por si mesmo e pelo outro. Não se trata de ser mais ou menos puro diante de Deus, mas cada vez mais de coração de carne, onde todas as petrificações foram e são transformadas em Igreja de nomes e rostos que amam e são amados.

Então, inspirados por Deus desde o nosso quotidiano, até que ponto a santidade não é uma escolha diária, várias vezes por dia, com tantas oportunidades de recomeço? Parece-me que, para isso, há que desejar ser santo. Não pela auréola, altar ou ar cândido, mas pela conversão a ser melhor. A pessoa em caminho de santidade, mesmo com medos ou dúvidas ou pecados, sabe deixar-se transformar na direcção do amor e da justiça, desde a simplicidade do “bom dia” até à entrega e cuidado dos que estão em maior sofrimento. E a vida plena acontece e espalha-se em mãos abertas, com luz, muita luz. Afinal, os santos e santas revestem-se de quotidiano e de nomes. Habita-lhes o amor e a vida.

Fotografia João Ferrand

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.