A marca das nossas férias

É evidente que não podemos pessoalizar na totalidade o agravamento das alterações climáticas, mas não devemos por isso supor que o nosso impacto não conta. O ser humano, por onde quer que passe, deixa a sua marca, afeta as relações sociais.

É evidente que não podemos pessoalizar na totalidade o agravamento das alterações climáticas, mas não devemos por isso supor que o nosso impacto não conta. O ser humano, por onde quer que passe, deixa a sua marca, afeta as relações sociais.

Qual é o meu ideal de férias? O descanso e a despreocupação total? O afastamento do mundo? Ou pelo contrário, a procura da novidade e do exótico? Num tempo em que me é dada a oportunidade de suspender as minhas funções, sou capaz de fazer aquilo que não posso fazer habitualmente, até de explorar novos interesses, novas habilidades. Se fomos, aliás, habituados a viver o nosso dia-a-dia com muitas restrições ao longo deste ano, estas férias podem sugerir (justificadamente) a necessidade de afirmar, com ainda mais pungência, a nossa liberdade.

Este é um ponto importantíssimo a preservar, porque serve o desenvolvimento pleno de cada pessoa. Mas a forma como afirmamos a nossa liberdade tem sempre implicações que nos ultrapassam. Vimos recentemente o quão longe pode ir esta vontade de afirmação, com as viagens ao espaço de Richard Branson e Jeff Bezos. Nenhum de nós fará certamente turismo espacial nos próximos tempos, mas estas situações excecionais podem pôr-nos a pensar na forma como calculamos os custos e benefícios, pessoais e coletivos, das escolhas que fazemos, dos sonhos que construímos e do lazer que procuramos.

São questões que não podemos deixar de colocar face a fenómenos climáticos extremos cada vez mais recorrentes e que garantidamente não afetam só o mundo menos desenvolvido, distante da atenção mediática dos países ditos desenvolvidos. Vimos as notícias da vaga de calor mortal no Canadá e nos Estados Unidos, vimos as cheias destruidoras na Alemanha e nos países vizinhos, bem como os incêndios intermináveis em vários países do Mediterrâneo, de que fazemos parte (e bem conhecemos essa nossa fragilidade). Não são, portanto, só «os outros» que sofrem as consequências dos padrões de vida menos sustentáveis – e nem sonhamos o que é estar no seu lugar de muito maior vulnerabilidade a estes fenómenos extremos.

Não são, portanto, só «os outros» que sofrem as consequências dos padrões de vida menos sustentáveis – e nem sonhamos o que é estar no seu lugar de muito maior vulnerabilidade a estes fenómenos extremos.

É evidente que não podemos pessoalizar na totalidade o agravamento das alterações climáticas, mas não devemos, por isso, supor que o nosso impacto não conta. O ser humano, por onde quer que passe, deixa a sua marca, afeta as relações sociais. Neste sentido, ganham hoje toda uma nova dimensão as palavras do antropólogo Claude Lévi-Strauss, que chegou a afirmar, em Tristes Trópicos (1955), que o que as viagens mostram, em primeiro lugar, é «o lixo lançado à cara da humanidade». Tratava-se de uma expressão forte para explicar a preocupação com a impossibilidade de um encontro autêntico com os povos, face à crescente ocidentalização e pressão do turismo. Hoje podemos perguntar-nos se o impacto das nossas viagens e dos nossos padrões de vida põe em causa a preservação, inclusive, das paisagens que estimamos e que procuramos e da vida de quem nelas habita.

As nossas férias também podem ser um sinal do estilo de vida e do mundo que queremos. Não há um botão off do impacto das minhas escolhas. As minhas férias podem ser mais ecológicas se eu integrar estes critérios nos meus planos desde o começo, desde as minhas motivações. Nem falo da mais básica norma de civismo de não deixar lixo na praia ou parque de campismo. Falo de questões mais existenciais. Tenho urgência de ir para longe? De andar de avião, de cruzeiro? Porquê? Evito falar destes temas com a minha família e com os meus amigos? Tenho medo de ficar sozinho ou de ser julgado nessas conversas? Ando com pressa durante as férias e deixo que isso afete as minhas escolhas, no meio de transporte, nas refeições? Paro para apreciar o valor da Criação? Quando imagino as minhas férias, o meu desejo é de descanso e de partilha ou de consumo e alheamento?

Há uma imagem muito clara para nos guiar nestas questões. Jesus foi com os discípulos para um lugar isolado para descansar. Mas a multidão continuava com fome. A solução é não perder a compaixão. O objetivo é que todos comam e fiquem saciados (Mc 6, 30-43).

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.