2020: Um ano vintage

O Pároco da Senhora da Hora desafia-nos a reconhecer a bênção recebida em 2020, partindo da sua experiência como pastor ao longo do último ano.

O Pároco da Senhora da Hora desafia-nos a reconhecer a bênção recebida em 2020, partindo da sua experiência como pastor ao longo do último ano.

Acertar no vinte

O nosso propósito para o ano pastoral 2019-2020 era o de “acertar no vinte”. E eis que o ano 20 do século XXI nos acertou em cheio, com esta pandemia que leva já nove meses de gestação e está a dar luz, na Igreja e no mundo, um tempo novo, não diria “um novo normal”, porque essa expressão vive ainda do passado como referência. E não me parece que devamos sequer viver o tempo presente, como um intervalo escuro ou um tempo para esquecer, uma espécie de penitência tarifada para logo depois retomar as velhas alegrias (melhor dizendo, as velharias) e as seguranças do tempo da programação organizada. Esse tempo velho caiu de maduro e deu lugar à surpresa e à aprendizagem de nos contentarmos, agora, por atravessar o desértico nevoeiro da pandemia, em regime de itinerância, apenas com o pão de cada dia, segundo a graça e “a mística do instante”. Vivamos, pois, este tempo, como um kairos, uma graça e uma oportunidade de crescimento, para um salto criativo e qualitativo na nossa vida eclesial, que às vezes avança mais por empurrão das circunstâncias do que por adesão à ação do Espírito Santo. De algum modo as experiências, mais ou menos acertadas ou assertivas, deste tempo gestacional são um bom “ensaio geral” para uma Igreja, cuja lentidão reformista foi acicatada pelo efeito acelerador que a pandemia provocou e destapou.

O meu programa é não cumprir o meu programa

Para começar, esta foi a minha principal obra de conversão pastoral, desde março para cá: a de não programar o tempo da graça. Viver a graça de cada dia, de cada hora, deste tempo, acolhendo a visita inesperada dos que se cruzam connosco, correspondendo aos “pedidos na hora”, descobrindo novos recursos humanos e operativos, subalternizando a tarefa agendada e a reunião marcada. Estar disponível para as surpresas de Deus, de modo que o meu programa seja precisamente o de não cumprir o meu programa, foi a aprendizagem mais violenta e mais graciosa que fiz desta longa pandemia. E com isso tive de aprender a desaprender tudo o que sabia fazer. E quem não desaprendeu com a pandemia não apreendeu nada da graça deste tempo, que há de marcar a divisória do antes e do depois… de muita coisa.

Mundo digital, um aliado da nova evangelização

Neste contexto, em que o distanciamento físico se tornou-se um dever ético, pareceu-nos claro, que era preciso lançar mão de novas ferramentas pastorais, sobretudo as do mundo digital. A internet, com os seus múltiplos recursos, sítios, aplicações e as suas poderosas redes sociais, tornaram-se os nossos principais aliados da nova evangelização. Da nossa parte, procuramos despertar nos agentes pastorais o dever de continuar a evangelizar, formando, acompanhando e alimentando os seus grupos, pela via digital. A Catequese saiu do seu gueto escolar e, por via digital, ganhou força e criatividade, envolvendo muito mais as famílias. Os modos e conceitos de corpo, de presença, de pertença e de participação estão em mutação. E não podemos ignorá-los em nome de uma encarnação, que não passa de um obcecado “fisicismo” pastoral. Quando falamos da presença real de Cristo, quando falamos da Igreja Corpo Místico de Cristo, quando falamos da comunhão dos santos, devíamos ser mais cautelosos na absolutização da presença física e reaprendermos toda uma nova gramática dos afetos, da relação, da comunicação e da comunhão pessoais e eclesiais.

Pais, ministros do culto familiar

O tempo da pandemia revelou que à medida que se fechavam os templos se multiplicavam as “igrejas domésticas”. Sugerimos, desde a primeira hora, um Guião para a oração dominical em família. É preciso que as famílias se redescubram e se ativem, como igrejas domésticas, deixando que os pais se assumam como verdadeiros “ministros do culto” e guias da celebração, segundo a sua condição batismal e matrimonial. Muitos temem que a multiplicação das Igrejas domésticas enfraqueça a Igreja, como grande família. Estou em crer que iremos precisamente numa direção contrária e que não vale a pena remar contra o vento, mas apajar enquanto venta, reforçando os elos da transmissão familiar da fé. Os ritmos e hábitos dos fiéis estão a ser reconfigurados e sem reversão. Mas os nossos ritmos celebrativos e os nossos calendários litúrgicos permanecem intocáveis! Acredito que o encontro presencial dos fiéis na vida e nas celebrações da comunidade paroquial tenderá a ser menos frequente, mas mais festivamente vivido. Os que deixaram de vir à Missa, ou porque vinham por hábito, ou porque se contentam com transmissões à distância, passam, nesta crise pandémica, pelo crisol da autenticidade da sua fé. Se não voltarem, é porque talvez nunca tenham vindo de corpo e alma. O vírus também serve para testar o quilate da nossa fé.

A bênção dos incómodos

Uma das bênçãos maiores deste tempo de pandemia, com restrições súbitas e inconstantes de circulação e ordens de recolhimento obrigatório, foi predispor as comunidades para a mudança. Abre-se também, por aqui, uma janela de oportunidade, para uma reinvenção da celebração da fé, em outros modos, em outros dias e em outros horários. Se não cedêssemos à pressão dos “pedidos” e dos “direitos a ter Missa” talvez já tivéssemos desenvolvido outras formas celebrativas (liturgia familiar, liturgia das horas, liturgia da Palavra, adoração eucarística etc) e já estariam implementados outros ministérios laicais, como os de leitor, de acólito, de animador das ADAP (Assembleias Dominicais na Ausência de Presbítero). Pode ser que seja desta. Com as novas tecnologias é ainda possível reunir várias comunidades sintonizadas entre si e com o seu pastor, a partir de uma determinada comunidade em celebração presencial, garantindo, por outros ministérios, a congregação das suas comunidades e o acesso dos fiéis à comunhão eucarística. Seria altura de ensaiar também experiências deste género.

A luta pelo luto

Julgo que este ano de 2020 também deixa feridas, sobretudo no campo da celebração da morte, que foi praticamente clandestinizada. Daí a importância não só dos ritos funerários, como do acompanhamento espiritual, em todo este processo de elaboração do luto. Não desistir de presidir às exéquias, nem que seja à chuva e com os pés na cova, para acompanhar os enlutados, foi uma das grandes lutas deste tempo. E dos momentos mais dolorosos e significativos do ministério pastoral, em que pelo menos, por aí, podemos ainda sentir o cheiro das ovelhas.

Beber para não esquecer

Com tudo isto, 2020 deixará marcas inapagáveis que não se podem reverter. E como este ano de 2020 é vintage, a receita para o merecer há muito foi dada pelo Senhor Jesus: “para vinho novo, odres novos” (Mt 9,17). Bebamo-lo, na passagem de ano, para não perder uma gota da sua graça. Bebamo-lo, pela taça da alegria ou pelo cálice do sofrimento, para nunca mais o esquecer. Este 2020 é bom e «boom» de mais, para o deitarmos a perder, em odres velhos, que já não suportam a gravidade e a novidade desta hora. Afinal 2020 é um ano vintage! Ainda o havemos de bendizer.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.