Viver em Atacama

À medida que o tempo avança, e o Senhor que nos precede exige o despojamento e a dependência dele, só dele, sem nenhum tipo de seguranças, a poética desvanece-se. Fica o frio. E a exigência de viver tendo o Senhor como única segurança.

Há 16 meses que fui viver para Atacama.

Atacama, situado no Chile, a cerca de 800 km de Santiago, é o nome do deserto mais alto e um dos mais secos do mundo. As temperaturas podem oscilar entre os 0oC à noite e os 40oC de dia e a ocorrência da chuva é muito rara. No entanto, um fenómeno ocorre, com alguns anos de intervalo. O florescimento do deserto. Belíssimo. Fenómeno raro e difícil de prever, pois tudo depende das chuvas. A única coisa que se pode fazer é desejar, esperar vigilante as chuvas que cairão, sem dúvida, mas nunca se sabe quando.

Para muitos é descrito como o milagre de Atacama.

A paisagem florida, absolutamente deslumbrante, é uma verdadeira e autêntica “pérola de alto preço” (cf. Mt 13, 46), que cada itinerante deseja nela encontrar. Surge quando menos se espera e, uma vez visível, não dura muito tempo, mas permite despertar, no interior de quem a descobre, a vivacidade do que é eterno e guardar na memória os traços impressionantes da beleza do criado.

 

Bem, confesso que não vivo no Chile. Explico.

Há 16 meses que, vivendo na comunidade de noviciado da minha Congregação, tenho o privilégio de acompanhar a vida de jovens mulheres no seu entusiasmante seguimento de Jesus. Em nenhum outro lugar, em nenhuma outra missão, encontrei tão luminosa a certeza do caminho pelo deserto como uma etapa, pelo qual todos temos de passar, neste percurso da escravidão à liberdade da terra prometida. O deserto é um dom. Um precioso dom de Deus.

No início do seguimento de Jesus há um encantamento próprio, que nos faz apreciar, como uma consolação, a certeza de que Deus “nos conduz ao deserto para nos falar ao coração” (Cf. Os 2,16). Mas, à medida que o tempo avança, e o Senhor que nos precede exige o despojamento e a dependência dele, só dele, sem nenhum tipo de seguranças, a poética desvanece-se. Fica o frio. E a exigência inóspita de viver tendo o Senhor como única segurança. E a imprevisibilidade de quem não pode programar nada, apenas esperar que a Sua graça desça sobre nós, como uma chuva abundante.

Mas o Senhor cumpre sempre as suas promessas: “Assim como a chuva que desce do céu, e não volta mais para lá, senão depois de empapar a terra, de a fecundar e fazer germinar, o mesmo sucede à palavra que sai da minha boca: não voltará para mim vazia, sem ter realizado a minha vontade e sem cumprir a sua missão.” (cf. Is 55, 10-11).

Assim o explicou Teilhard de Chardin sj: “Quem poderá dizer o que Deus faria de nós, se ousássemos, segundo a sua palavra, seguir até ao fim os Seus conselhos, entregando-nos à providência?”

Que vertigem aceitar viver confiando apenas na providência do Pai.

Assim o explicou Teilhard de Chardin sj: “Quem poderá dizer o que Deus faria de nós, se ousássemos, segundo a sua palavra, seguir até ao fim os Seus conselhos, entregando-nos à providência?”

Que vertigem aceitar viver sabendo que seremos “conduzidos pelo Espírito ao deserto” (Lc 4, 1), onde nos depararemos com cenários de desolação sensível, mas que já contêm em si mesmos os traços de beleza da consolação que surgirá, sem dúvida, ainda que inesperada.

Sim, tal como “o vento sopra onde quer”, sem que saibamos “de onde vem nem para onde vai” (cf. Jo 3, 8), se nos soubermos manter vigilantes e desejosos na espera, a paisagem florida surgirá. Acontece algo semelhante à parábola que Jesus conta: “Felizes aqueles servos a quem o senhor, quando vier, encontrar vigilantes! Em verdade vos digo: Vai cingir-se, mandará que se ponham à mesa e há-de servi-los” (cf. Lc 12, 37).

Este momento, quando Deus se inclina diante de nós, se senta connosco à mesa e nos serve com a Sua palavra, é o nosso milagre de Atacama. A vida enche-se de uma alegria luminosa e consoladora que dá um sentido profundo a toda a existência. Quando menos esperamos, o lugar mais alto e seco do nosso mundo interior, desperta com novas paisagens deslumbrantes, desvanecendo o limiar entre o inóspito e o acolhedor, o estéril e o fértil, o lugar onde aprendemos a habitar.

E há 16 meses que testemunho o florescer surpreendente da graça de Deus nas jovens mulheres que tenho o privilégio de acompanhar. Que milagre, habitar em vidas assim. Ousadas porque confiam e se entregam nas mãos daquele que sustenta e fecunda todos os desertos.

Fotografia: Delfino Barboza – Unsplash

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.