Viver a partir de que lugar?

O contacto com a realidade da morte traz ao de cima as imagens que temos de Deus. É duro fazer perguntas a Deus sobre o que aconteceu, ou ouvir comentários piedosos sobre um Deus que escolhe quem vem buscar!

Foi perto da Páscoa que soubemos que a minha Mãe tinha cancro. Quisemos adaptar o programa habitual e que ela contasse à família. Mas ela não quis alterar nada nem dizer a ninguém. Não queria entristecer ninguém antes de tempo, não era a hora. Nessa Páscoa, vi-a preparar e servir o almoço a mais de 30 pessoas como era costume. Vi-a conversar e sorrir, estar com as pessoas, entrar e sair da cozinha, aproveitar o dia. A forma como a minha Mãe viveu a doença, sempre saboreando a vida com alegria e entusiasmo, deixou-me a mim, à nossa família e amigos, uma importante herança espiritual e humana. Impressiona-me muito que, até à sua hora, a minha Mãe tenha procurado lavar os pés aos outros, acolhendo, saindo de si, indo ao encontro dos doentes e dos mais sozinhos. Ela, doente. Ela, na cruz. Mas era para os outros, para o amor que se voltava.

Impressiona-me muito que, até à sua hora, a minha Mãe tenha procurado lavar os pés aos outros, acolhendo, saindo de si, indo ao encontro dos doentes e dos mais sozinhos. Ela, doente. Ela, na cruz. Mas era para os outros, para o amor que se voltava.

Depois do dia em que ouvimos a oncologista da minha Mãe dizer que já não havia mais nenhuma terapêutica disponível, mas sim cuidar e acompanhar, seguiu-se para nós uma sexta-feira de Paixão. E depois da morte da minha Mãe, um longo sábado. O caminho que se iniciou a seguir à sua morte, de luto, de fragilidade, de recomeço, esteve para mim sempre associado ao tempo Pascal.  Fiquei muito tempo sentada junto ao túmulo. Sabia que não conseguiria avançar para onde quer que fosse a partir de ideias de céu ou de morte, mais ou menos espiritualizadas. E só conseguiria avançar se, como até ali, pudesse ser autêntica na minha relação com Deus. Tantas vezes, eventualmente com boas intenções, mas também por fuga, espiritualizamos a vida, em particular a morte e a dor. Ou seja, tornamos um acontecimento mais simbólico do que real, criamos distrações. Partimos de ideias e não da realidade. E isso não só não nos faz bem, como não pode ser o desejo d’Ele para nós.

O contacto com a realidade da morte traz ao de cima as imagens que temos de Deus. É duro fazer perguntas a Deus sobre o que aconteceu, ou ouvir comentários piedosos sobre um Deus que escolhe quem vem buscar!… Mas só através das perguntas, e até mesmo da zanga com Ele, foi possível descobrir um Deus que salva, não através do milagre que queremos, mas através da presença incondicional e da garantia de vida. E essa foi a minha maior descoberta, foi a minha Páscoa!

Para viver a morte a partir da raiz, nomeadamente a partir da raiz da nossa fé, é preciso, por isso, fazer a experiência humana e não ficarmos por aquilo em que deveríamos acreditar, deveríamos pensar ou deveríamos sentir. Tocar a dor é difícil e leva tempo. Para o fazermos precisamos de estar acompanhados e de nos sentirmos acolhidos. Só assim vamos percebendo que essa dor não nos vai destruir. Mas é progressivo. Não podemos querer uma liturgia rápida da morte que arrume e abafe a dor que não queremos sentir. É preciso deixar a dor ser dor, deixando-a ser em nós e nós nela. E isso vale para qualquer dor na nossa vida! Para além de um espaço individual para sentirmos, precisamos de um espaço coletivo, nas nossas famílias, nos nossos grupos de amigos, nas nossas comunidades, onde se possa falar da morte e onde se possa falar da dor, nomeadamente da dor que se sente quando alguém de quem gostamos, morre. E do processo que isso desperta, envolve. Negar isso é negar uma parte extremamente importante e identitária do que é ser humano. Em certa medida, é negar a experiência da vida.

Tocar a dor é difícil e leva tempo. Para o fazermos precisamos de estar acompanhados e de nos sentirmos acolhidos. Só assim vamos percebendo que essa dor não nos vai destruir. Mas é progressivo. Não podemos querer uma liturgia rápida da morte que arrume e abafe a dor que não queremos sentir. É preciso deixar a dor ser dor, deixando-a ser em nós e nós nela.

Algumas vezes perguntaram-me como é viver sem Mãe e como é que se ultrapassa uma morte. Fui também percebendo uma resposta em mim: eu tenho Mãe (e que Mãe!) e a morte não se ultrapassa. A morte não passa. Tal como a vida não passa. Um nascimento marca e muda a vida. Uma morte também. A vida e a morte integram-se. Mas para isso é preciso encontrarmo-nos connosco e com a nossa verdade e isso é um caminho. Atravessando a dor, atravessamos a morte, e essa travessia com Deus, abre-nos ao mistério da Ressurreição.

Foram precisos 3 anos para sentir de novo a alegria do Domingo da Ressurreição. Sinto que foi preciso atravessar uma noite muito escura, estar muito tempo sentada junto ao túmulo, para um dia ter ouvido, a partir do meu coração, as perguntas: vais viver a partir de que lugar? Do túmulo ou da Ressurreição? Da morte ou da vida? Do sofrimento ou da esperança? E eu escolhi. Mas aprendi também que a escolha pode ser diária. O exercício Pascal é o exercício da nossa vida. E a vida é um exercício permanente de lugar. Vou viver a partir do medo ou da confiança? Da aparência ou da autenticidade? Vou viver a partir da ideia de que acredito em Deus ou a partir da relação com Ele?

A Páscoa, que significa passagem em hebraico, acontece no caminho, em caminho, e sempre a partir da realidade. Por isso não nos preocupemos se no tempo litúrgico da Páscoa, e mesmo chegados ao Pentecostes, ainda sentirmos trevas e teias de aranha no nosso coração. O caminho dos discípulos de Emaús, de volta a Jerusalém, de volta à integração, de volta ao encontro, leva o tempo que cada um de nós precisa. Só pode haver Páscoa a partir da verdade do que somos e sentimos. Estamos em movimento? Caminhamos acompanhados pelos outros e por Deus? Procuramos ler a vida? Então é preciso ter paciência e confiar. Leva tempo. Eu cheguei a sentir que, depois destes acontecimentos na minha vida, não haveria novidade ou mais alegria.  Mas o dia chega, em que o Espírito Santo nos faz sentir que a dor re-conhecida, atravessada e cuidada se transformou em mais vida. E em que sentimos, de facto, que Jesus, o Bom Pastor, não nos deixou sós. A minha vida não é melhor sem a minha Mãe, não é pior, é diferente. É outra vida. Mas é vida! E isso parece-me ao mesmo tempo milagroso e frágil. Sim, viver a partir da realidade do que somos e do que nos acontece, é frágil. Mas a beleza da vida e da Ressurreição é essa: a Luz atravessa tudo e sempre, mesmo que os nossos olhos precisem de tempo para acreditar.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.