De repente, dou por mim num pelado em Zagreb, vestindo uma camisola com o nome “Tchékhov” nas costas. Tinha caído de pára-quedas, por assim dizer, num jogo de futebol entre escritores europeus e artistas plásticos croatas… Isto passou-se há mil anos, quando eu ainda me irritava se me chamavam “jovem”. Imaginem comigo, por favor: céus azuis, o sol a brilhar, aquela calma antiga que o verão sabe instalar no meio das cidades. Uma carrinha simpática levara-me do aeroporto para o campo da bola de uma escola desabitada. “É aqui?” Eu achava que tinha sido convidado para um festival de contos, e agora via-me como que depositado num pelado, de alma aflita, a ver se não deixava mal a reputação futebolística de Portugal. Foi um jogo um pouco diferente, com gente a beber cerveja nas laterais, guarda-redes que fumavam, conversas monty-pythonianas à volta do esférico. Mas não houve lesões graves e a literatura saiu vencedora (2-1, se bem me lembro). Os organizadores estavam todos contentes. A futebolada quebrara o gelo inicial próprio destes eventos e, daí para a frente, o festival pôde tornar-se o que era: um encontro literário em redor do conto. Lemos as nossas histórias em traduções inglesas, discutimos sobre isto e aquilo, divertimo-nos em geral, mas, para mim, houve um momento acima de todos, um daqueles que rasgam a tela das lembranças. “O quê, nunca leste Joseph Roth?”
Foi o que me perguntou James Hopkin, um escritor inglês especialista em literatura do centro da Europa, a meio de uma conversa. “Pelo conto que leste na sessão do outro dia, imaginei que conhecias. Tens de ler!” Nessa tal apresentação, eu lera L.: a história, narrada na primeira pessoa, de um homem que se recusa a aceitar a morte do pai e sai para a rua armado apenas de uma misteriosa linguagem privada. Ainda hoje, depois de ter lido muito do que Roth escreveu, não percebo a ligação que Hopkin fez nesse momento, mas estou-lhe grato para a vida. (Talvez tenha sido um efeito da tradução; talvez a tradução, que Umberto Eco chamou “a língua oficial da União Europeia”, tenha rothizado uma frase ou outra do meu continho aos ouvidos daquele inglês. O que, a ser verdade, prova que a tradução pode afinal ser redenção…) Mas, sim, repito: grato para a vida. Joseph Roth — que apanhou o comboio para deixar a Alemanha no exato dia em que Hitler subiu ao poder, e que viria a morrer em Paris, no ano de 1939, antes de a cidade ser ocupada pelos nazis — não é só um dos maiores escritores do século XX; é o grande escritor europeu do futuro.
Que este português tenha chegado a ele num café de Zagreb, e pela mão de um britânico, é, ao mesmo tempo, adequado e irónico. Irónico, se pensarmos no (perdoem-me o palavrão) Brexit. Adequado, porque Roth é o escritor da Europa unida e multicultural, o escritor do sonho europeu “avant la lettre”, o primeiro grande escritor dessa língua chamada tradução.
A Marcha de Radetzky, o seu romance mais conhecido, conta a história de três varões da família Trotta para nos mostrar por dentro a queda do Império Austro-Húngaro e o final de uma era. É uma escrita iluminada, que sabe equilibrar comédia e saudade, ação e introspeção, narrativa e linguagem — se calhar podemos começar por aí.
O poeta Joseph Brodsky disse haver um poema em cada página de Roth. Uma observação tão célebre quanto justa. Muitas vezes, sim, as palavras do autor de A Marcha de Radetzky parecem menos preocupadas em contar as coisas do que em cantá-las. (Numa carta, Roth chama “baladesco” ao tom da sua escrita.) Mas é um lirismo sempre em conversa com o mundo, atento ao lado outro de cada instante, e isso dá-lhe movimento.
A propósito da arte da metáfora em Roth, o crítico James Wood fala de lirismo “abstrato” e dá como exemplo uma frase de A Marcha de Radetzky: “Enquanto falava, ia penteando os bigodes loiros-grisalhos, como se fizesse festas às duas metades da Monarquia Dual…” Mas os exemplos são mil e um, podíamos preencher várias páginas com citações de nos abrirem a cabeça: “O médico do regimento já não tinha olhos, só óculos” (A Marcha de Radetzky); “A chaminé de uma fábrica (…), como um farol extinto” (Abril); “… ‘humanidade’, um conceito tão vago que, por contraste, uma pessoa pode pensar que vai encontrar Deus na esquina mais próxima.” (Carta a Stefan Zweig, 24 de julho de 1935).
A vida de Joseph Roth dava — não vamos dizer um filme, que o escritor falava do cinema como o Anticristo — um livro tremendo. Ou vários, pois Roth inventou-se a si próprio (os biógrafos falam de dezassete identidades diferentes). Uma vida misteriosa e excessiva, que, por um lado, foi uma viagem demasiado curta e, por outro, teve uma intensidade histórica. De uma família judia da Galicia, nos confins do Império, para os centros de Viena, Berlim e Paris; de “Muniu Faktish” (alcunha do miúdo opinativo que repetia a expressão “de facto”) para o temido jornalista “Der rote Roth” (Roth o Vermelho), e daí para o Joseph Roth dos últimos anos, que se via como católico e monárquico — escritor pobre e genial a quem o famoso Stefan Zweig pedia conselhos literários.
O túmulo do Imperador, último livro que escreveu, é uma espécie de sequela de A Marcha de Radetzky. Mais curto e mais brusco do que este, conta a história de Franz Ferdinand Trotta, primo do herói de A Marcha, para nos mostrar a alma da Europa entre 1913 e 1938. Ao longo da sua obra, Roth dá a entender uma certa nostalgia em relação ao Império Austro-Húngaro, não deixando de notar as suas limitações e desaires (por vezes até à caricatura). Mas talvez quem melhor expresse a sua visão, ao mesmo tempo conservadora e visionária, seja Chojnicki, personagem de O túmulo do Imperador: “ ‘Ele é apenas um vendedor de castanhas’, disse Chojnicki, ‘mas se pensares nisso, não há profissão mais simbólica. (…) Onde quer que as pessoas comessem as suas castanhas, aí era Áustria e Francisco José era o Imperador. Agora as castanhas precisam de visto! Que mundo este!…’ ”
O génio literário deu-lhe imortalidade. Mas o que lhe dá atualidade é ter denunciado os nacionalismos, ter combatido a própria ideia de nacionalismo, e ter projetado uma Europa para além dos estados-nação. Algumas passagens espantam-nos com o seu carácter profético. Outras, francamente, assustam-nos — é que muitos sinais desse “tempo de nacionalismos” em que Roth viveu não são assim tão diferentes do que se vai vendo hoje, em várias partes da Europa. Sim, tudo é política e, sim, este nosso momento também é “histórico”. E há alturas em que, para defender os nossos ideais, temos de passar a jogar ao ataque.
Hoje lembro-me dessa partida em Zagreb como um encontro “lírico-abstrato” do europeísmo do futuro — mas, perdoem-me, isso não é para aqui chamado, sou só eu a conversar com os meus botões. O que, sim, cabe aqui nesta espécie de crónica sobre o grande Joseph Roth é a afirmação de que o sonho europeu é urgente, é para hoje, e que, caramba, está na hora de os europeístas vestirem a camisola.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.