Vale-nos a ternura de Deus

Nestes tempos em que assistimos em direto a tantos acontecimentos trágicos, há vozes que se levantam pela paz e pela misericórdia.

Talvez como poucas vezes na história assistimos em direto aos trágicos acontecimentos de atentados e guerras cruéis, perseguições étnicas e religiosas, limpezas culturais com a destruição de património religioso ou civil, quer cristão quer muçulmano, aos migrantes vivendo em condições infra-humanas. Há vozes que se levantam pela paz, mas o seu efeito perde-se no emaranhado de interesses políticos e económicos que movem as potências.

Todos nos sentimos feridos e amedrontados, carentes da presença curadora e reconciliadora de um Deus que nos ama incondicionalmente. Aperta-se-nos o coração lembrar que alguns desses teatros de guerra, destruição, miséria e fome correspondem a partes do mundo para onde outrora os Padres e Madres do Deserto seguiam o apelo do silêncio para a escuta e o encontro.

Com o pensamento nestes pais e mães espirituais que se retiraram para o ermo desértico em busca de Deus, primeiro no Egito (entre os séculos IV e V) e depois, em vagas sucessivas, na Palestina e na Síria, consola ler A Via da Misericórdia na sabedoria dos padres do deserto, de Isidro Lamelas, uma antologia dos “ditos”, que passaram oralmente de mestre a discípulo e, mais tarde foram fixados por escrito.

Ensina Isaac de Nínive, o Sírio, que viveu no século VII a norte da atual Mossul: “Deixa-te perseguir, mas tu não persigas; / Deixa-te crucificar, mas tu não crucifiques; / Deixa-te ultrajar, mas tu não ultrajes; / Deixa-te caluniar, mas tu não calunies. / Sê alegre com os que se alegram; / Chora com os que choram. / Tal é o sinal da verdadeira pureza. / Sofre com os que sofrem; / Compadece-te dos pecadores; / E alegra-te com os que se arrependem. / Sê amigo de todos … / Estende o teu manto sobre aqueles que vês cair em pecado e cobre-os; / E se não podes carregar sobre ti o seu erro, / e receber em sua vez a punição, / não os oprimas mais.”

E são palavras da madre Sinclética, uma das mulheres que, inundadas pela ternura de Deus, praticavam a arte da misericórdia: “Imita o publicano, para não seres condenado como o fariseu. Imita a mansidão de Moisés, para converteres o teu coração de pedra em fonte de água.”

 

Como é que os profetas veem o amor de Deus?

Na sua linguagem poética, os profetas e os salmistas descrevem o sentimento de Deus pelo homem por via do amor e por via do feminino. Amar desdobra-se nas expressões “dar preferência”, “acarinhar”, “boa vontade”. O verbo raham significa uma dinâmica de ação caraterística de quem tem útero e ama de forma maternal. “Como a mãe consola o seu filho, assim Eu vos consolarei; em Jerusalém sereis consolados” (Is 66, 13).

No Salmo 103,13 este mesmo amor de Deus é apresentado na forma paternal. “Como um pai se compadece dos filhos, assim o SENHOR se compadece dos que o temem.”

Nos profetas Jeremias, Ezequiel e Oseias o amor de Deus pelo seu povo é simbolizado pelo amor conjugal: “Recordo-me da tua fidelidade no tempo da tua juventude, dos amores do tempo do teu noivado, quando me seguias no deserto, na terra em que não se semeia. Israel era, então, propriedade sagrada do SENHOR, primícias da sua colheita. Todos os que ousavam comer dela, pagavam, e sobrevinha-lhes a desgraça” (Jr 2,2-3).

 

Lucas, o evangelista da misericórdia

No capítulo XV do seu Evangelho, Lucas conta três parábolas: a do pastor que perdeu uma das suas 100 ovelhas, que também aparece em Mateus; a da mulher que perde dentro de casa uma das 10 dracmas que possuía, e a do Filho Pródigo, considerada a parábola das parábolas. Tanto a brevíssima parábola da moeda perdida (Lc 15,8-10) como o longo relato do pai que tinha dois filhos (Lc 15,11-32) são próprios de Lucas.

Nestas narrativas existe a procura, metódica, em várias etapas, do que está perdido. O processo consiste num caminho a percorrer até ao encontro, que é sempre um reencontro. Assim o pastor, a mulher e o Pai misericordioso. Estas três parábolas têm uma moldura comum que lhes serve de enquadramento e Jesus conta-as para dar a descobrir a natureza de Deus. Deus é, no seu ser, misericórdia.

Um Pai tem dois filhos problemáticos porque ambos, à sua maneira, interiorizaram a imagem de um Pai justiceiro. Um vai para longe, depois de pedir a parte da herança e, em situação de miséria, a nostalgia do dom fá-lo voltar. Caindo em si, levanta-se (verbo do campo semântico de “ressurreição”) e põe-se a caminho guiado pela memória, ainda que difusa, do amor do Pai e da casa paterna. Ao vê-lo, o Pai enche-se de compaixão e corre ao seu encontro, percorrendo ambos o fim do caminho. Com ternura, cobre-o de beijos e interrompe o discurso que o filho tinha preparado. Faz-se festa porque o filho que estava perdido voltou e logo lhe foi entregue a túnica, o anel e as sandálias, símbolos de filho, herdeiro e homem livre, já que misericórdia não é uma recompensa. O filho é o mais importante, e o Pai é sempre apresentado cheio de alegria quando perdoa.

A experiência da misericórdia abre o homem à surpresa de Deus. Jesus revela como decisivo para a vida humana uma relação com Deus que permite a transformação do homem, o perdão e a salvação. (Não surpreende que o Evangelho de Lucas também seja conhecido como o Evangelho da Salvação.)

Voltemos ao nosso mundo. Sobre a Viagem Apostólica que realizou à Albânia, em Setembro de 2014, e que descreveu como o desejo de visitar um país que tinha sido oprimido durante muito tempo por um regime ateu e desumano e que experimentava a convivência pacífica entre as suas diversas componentes religiosas, o Papa Francisco afirmou: “A nossa força é o amor de Cristo! Uma força que nos ampara nos momentos de dificuldade e que inspira a ação apostólica para oferecer a todos bondade e perdão, testemunhando assim a misericórdia de Deus.”

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.