Há uns anos, estava a assistir a um Braga-Benfica, e um remate falhado sobressaltou-me como um verso modernista, um refrão de Lou Reed, um cometa na noite. A bola subiu demais, passando por cima da baliza e foi bater na grande rocha, na carne nua da montanha — que não devia estar ali. Foi o que senti na altura, foi esse o meu espanto sem palavras: aquilo não devia estar ali. Uma rocha num estádio? Uma montanha atrás da baliza? De repente, graças a uma bola errada, aquele jogo profissional da primeira divisão ganhava qualquer coisa de peladinha entre amigos. Que silêncio, queridos leitores. Na minha memória, o estádio calou-se e ouvimos todos o silêncio daquele esférico improvável tocando na pedra e regressando à relva. Um espanto monumental. Todos nós, adeptos, jogadores, treinadores, jornalistas, árbitros (sim, até os árbitros, talvez) sofrendo aquele lugar, aquela arquitetura, em ricochete. Por assim dizer — isto não é muito científico. Mas foi tão bonito que nunca mais esqueci.
Voltou-me essa imagem, há umas semanas, ao ler a entrevista que Eduardo Souto de Moura deu ao Público. Nela, diz o autor do Estádio Municipal de Braga: “A figura do arquiteto artista acabou.” A frase apanhou-me porque pareceu-me tocar numa ferida geral do nosso viver. Porque não é só na arquitetura que a ideia de “arte”, “artista” ou “autor” está em perda. No cinema — que, como a arquitetura, vive de uma negociação permanente entre desenho e mundo, visão e dinheiro — também se sente qualquer coisa parecida. O cinema de autor ou deixou de existir ou passou a ser feito quase só para festivais. Filmes um pouco fora da norma correm o risco de ser assassinados com o rótulo de “experimentais”; por outro lado, filmes lineares, de gosto fácil, ganham prémios de “arte”… E também nos livros se nota um fenómeno semelhante. Basta olhar para a invenção de uma tal de “ficção literária” como segmento minoritário — quer dizer que a maior parte da ficção que anda para aí não é literária, não é verdade?
Paradoxo: temos maior esperança de vida, mas menos esperança e menos vida.
Desta mesma tendência fazem parte a progressiva dessacralização do mundo; a elevação do simplismo a norma; a confusão entre liberdade de expressão e uma bitola geral que nivela tudo por baixo; a confusão entre o gesto revolucionário de Duchamp e o facilitismo do clichê que afirma “bastar um Eu dizer que é arte para passar a ser arte”, etc. E “o fim da política” de que nos queixamos há tanto tempo — política de curto prazo, de interesses, com muita técnica de comunicação mas sem visão, pensamento, valores — não terá a ver com a morte do que se poderia chamar o cidadão-artista? Se o mundo deixa de poder ser algo para além de literal (por oposição a simbólico), funcional (por oposição a misterioso) e útil (por oposição a inspirador), para quê votarmos ao lado das nossas convicções (por oposição aos nossos impulsos mais primários ou aos nossos interesses mais imediatos)?
Resta-nos perguntar o que estará por trás dessa tendência. A superficialidade do olhar trazida pelos ecrãs, pelas redes, pela net? Um modo de viver que nos suga o tempo? (Paradoxo: temos maior esperança de vida, mas menos esperança e menos vida.) Vidas sempre “ligadas” e sempre “noutro sítio”? E, de repente, regresso à Pedreira. Sobre arquitetura, não sei nada — para lá do que é estar num lugar. Mas ocorre-me que talvez o arquiteto-artista de que fala Souto de Moura não possa continuar a existir porque o nosso mundo se tornou um lugar “virtual”. A experiência de um espaço implica presença e tempo — duas condições cada vez mais difíceis nesta nossa época internética. (Noutra passagem da entrevista, Souto de Moura cita Herberto Helder: “o espaço não existe, é uma metáfora do tempo”.) A bola que bateu na grande pedra atrás da baliza: isso foi a arquitetura a tirar-me o tapete, a fazer-me repensar o que é um estádio, o que é um jogo de futebol, o que é estar em comunidade a partilhar um silêncio maior que o de cada um. Se não estamos “de corpo inteiro” nos lugares (porque sempre “ligados”, sempre “noutro sítio”), perdemos capacidade de dialogar com o que aí acontece, perdemos possibilidades de espanto. Dito de outra maneira: queimamos obras de arte irrepetíveis ainda antes que elas nos aconteçam.
A questão é que, se não estivermos “lá” (se, por exemplo, subirmos esse lanço distraídos com uma parvoíce qualquer no telemóvel), não há escadas, por mais belas, que nos mudem.
Manuel Graça Dias — que morreu em março mas que estou sempre à espera de encontrar, por acaso, num dia de chuva, ali para os lados da Calçada da Estrela — tem a melhor definição de escadas. Começa assim: “As escadas são séries de planos horizontais, postos muito próximos de modo a unir os diferentes níveis por onde passa a vida de um homem./ Toda a gente julga que sabe o que é uma escada e todos têm, de certeza, no fundo da memória, guardada, uma escada qualquer que percorreram./ As pessoas não são iguais depois de atravessarem escadas diferentes.”
A questão é que, se não estivermos “lá” (se, por exemplo, subirmos esse lanço distraídos com uma parvoíce qualquer no telemóvel), não há escadas, por mais belas, que nos mudem.
Acabo de escrever este texto em frente a uma janela que dá para uma rua a descer. Tenho um candeeiro náutico à minha esquerda e uma cortina teatral à minha direita; é como se estivesse num barco de teatro a subir do rio para a cidade. Se me permite a pergunta, caro leitor: onde está agora, ao ler estas palavras?
Fotografia: ©準建築人手札網站 Forgemind ArchiMedia from Taichung, Taiwan, Taiwan – Eduardo Souto de Moura – Estádio Municipal de Braga.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.